Um Brasil que não reconheço


Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
19/06/2022

“Toda vez que um justo grita, um carrasco o vem calar, quem não presta fica vivo, quem é bom, mandam matar”, dizia Cecília Meireles

Os covardes e bárbaros assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, em plena floresta amazônica, é o retrato de um Brasil que nos envergonha. São como as mortes dos negros nas favelas cariocas pela milícia e pelo tráfico. São como as mortes das crianças no Brasil todo, onde 33 milhões de brasileiros vivem o flagelo da fome. São o retrato de um governo fascista que loteou e entregou a Amazônia para o garimpo, para os desmatadores, para o tráfico. Um governo que incentiva e promove a barbárie nas florestas, no campo, nas periferias das cidades.

Nós, brasileiros, já não reconhecemos o Brasil. A estupidez personificada na pessoa do Presidente da República afasta de cada um de nós qualquer hipótese de identificação. O fascismo é como um ácido, que destrói tudo e corrói qualquer hipótese de esperança. Bestificaram o combate à pandemia, vulgarizaram a cultura, a ciência. Até mesmo as cores verde e amarela foram usurpadas como forma de nos afastar de uma ideia de nação.

A política do entreguismo e de degradação precisa de terra arrasada. Segue rigorosamente uma estratégia. O ideal para esse governo é ter o não debate, a não política, a cizânia como mote no dia a dia, a impregnação das notícias falsas e as ininterruptas tentativas de ruptura institucional. A fragilização dos poderes constituídos, a afronta ao Poder Judiciário e a submissão do Poder Legislativo que, com os cofres abertos, abre mão do seu papel constitucional. Enquanto isso, a população vai tendo acesso a uma política insana de armamento e o fim das políticas sociais é maquiado com a indústria de fake news. O Brasil vive um caos.

Nesse caos, o Presidente da República, que foi insensível e sádico com os 660 mil mortos pelo Coronavírus, que desdenhou da dor dos que perderam seus entes queridos, se dá o direito de dizer que o jornalista inglês e o maior indigenista brasileiro foram “imprudentes” ao saírem para fazer seus trabalhos numa floresta que deveria ser nossa. Na verdade, o que esses responsáveis diretos pela destruição da Amazônia mais querem é exatamente calar a imprensa independente e afastar das florestas os indigenistas que conhecem os dramas da região.

Uma pergunta que não quer calar: por que o Bruno Pereira foi demitido da Funai na gestão do Moro enquanto Ministro da Justiça? Era uma opção de esvaziamento das lideranças que realmente conheciam a questão indígena na Amazônia? Era um seguimento da política de “passar a boiada” anunciada pelo então Ministro Salles? Não seria hora de convocar no Congresso Nacional o ex-tudo Sérgio Moro para explicar? Agora que ele anda rompido com o governo e desmoralizado, talvez resolva falar e fazer algo útil.

Mais uma vez o Brasil estará exposto ao ridículo mundo afora. A imagem do país nos foros internacionais é constrangedora. O Brasil virou um país pequeno, tão ridículo, que o Presidente da República vai lamber as botas do Presidente dos EUA para pedir ajuda nas eleições. E anuncia dia após dia a hipótese de uma ruptura institucional. Um golpe. Uma vergonha que só não constrange os bolsonaristas por não terem eles senso do ridículo.

As mortes de Dom Phillips e de Bruno Pereira estão tendo uma grande repercussão internacional, pois o jornalista é inglês e trabalhava no jornal britânico The Guardian. No Brasil, o extermínio de 25 brasileiros negros numa ação policial na favela sequer ocupa o noticiário. A morte do pobre e invisível foi banalizada. A morte de brasileiros pela polícia, pela milícia, pelos garimpeiros, pelo tráfico não é notícia que mereça destaque na imprensa e não ocupa espaço na agenda governamental. Mas, como em todo país que tem complexo de vira-lata, o assassinato de um grande jornalista, branco, de um respeitado jornal inglês, vai dar voz ao desespero dos brasileiros que sentem que estão perdendo sua pátria para esse bando de milicianos que já se infiltrou até nas Forças Armadas.

Que as mortes dos dois profissionais joguem luz neste país que se encontra à deriva, às cegas, onde o compromisso com a dignidade e com a vida humana não é sequer colocado na mesa como opção. O governo optou pela barbárie e se orgulha disto. Vamos resistir e lutar para ter o Brasil de volta.

Lembro-me de João Cabral de Melo Neto, em Morte e Vida Severina: “E se somos Severinos, iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre, de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença, é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida).

(*) Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay, é advogado.

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