“Existem Cieps além daqueles das estradas”, por Apio Gomes


Ápio Gomes
19/08/2022

Em homenagem ao jornalista e militante do PDT Apio Gomes, que faleceu nesta sexta-feira (19) em Maricá, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, resgatamos um dos seus artigos publicados em 2013.

Ao poeta Luís de Camões peço licença pelo mote e inspiração para compor estas poucas linhas

Ao poeta Luís de Camões peço licença pelo mote e inspiração para compor estas poucas linhas para apresentar o que foi a ocorrência da primeira eleição geral/posse/gestão pós-ditadura, há 30 anos, no Rio de Janeiro: a nossa Raquel.

Claro que esta história é narrada pelo nosso grupo; portanto suscetível de alguns exageros, algumas alegorias; porque conviver com o sonho político nos faz, vez por outra, tangenciar o cartesianismo – ou o ideal não se sustentaria. Mas, creia, em momento algum fomos subalternos nos textos produzidos: não tentamos fazer de nosso Labão um mito.

Para que os mais jovens entendam a importância do 15 de março de 1983, é preciso ambientar-se o início da década de 60, em que o Brasil florescia como nação: uma arquitetura arrojada; surgia o cinema novo, a bossa nova; no Rio de Janeiro, os cinemas de arte, com debates após filmes de Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Pier Paolo Pasolini, Glauber Rocha; nas livrarias sempre se encontrava o último livro do filósofo Jean-Paul Sartre (naquela época, as livrarias não pegavam o nosso dinheiro e entregavam o livro três dias depois – era toma lá, dá cá). Ainda se respirava a fragrância do futebol-arte de Didi, Garrincha e Nilton Santos, comandantes supremos da vitoriosa campanha de 1958, na Suécia.

Mas no nosso calendário existiria um 1964, que, em seu primeiro de abril nos pregou uma peça: o sonho acabou, como na música de Gilberto Gil:

“O sonho acabou / Quem não dormiu no sleeping-bag nem sequer sonhou / O sonho acabou hoje, quando o céu / Foi de-manhando, dessolvindo, vindo, vindo / Dissolvendo a noite na boca do dia / O sonho acabou / Dissolvendo a pílula de vida do doutor Ross / Na barriga de Maria / O sonho acabou desmanchando / A trama do doutor Silvana / A transa do doutor Fantástico / E o meu melaço de cana / O sonho acabou transformando / O sangue do cordeiro em água / Derretendo a minha mágoa / Derrubando a minha cama / O sonho acabou / Foi pesado o sono pra quem não sonhou.”

Neste curto espaço não dá para comentar o ocorrido naquelas duas décadas; mas o jornal Globo – insuspeito porque era um dos porta-vozes da ditadura – trouxe matérias, nas últimas semanas, sobre tortura de crianças. Dê asas à sua imaginação e multiplique por muito.

Convido-o a ler as seis matérias que compõem este nosso trabalho, em que buscamos, para sua realização, a isenção que se deve ter, embora – acredite! – é muito difícil nos despir do onírico, ao lembrar como foi nossa participação nesta revolução no serviço público do Rio de Janeiro, mesmo atuando em cargos que podem ser considerados menores: as tarefas eram tão imediatas e interligadas que quase não existia diferença de classes.

O inconsciente coletivo do brasileiro diz que político nunca cumpre promessa de campanha. Não sei bem se isto é uma verdade plena; de certeza, somente tenho uma: as duas mais conhecidas de suas marcas de governo, nesta gestão de Brizola, foram propostas em campanha. Com a palavra o próprio:

Combate à violência

“Não. Nós vamos viver a plenitude dos nossos direitos: os direitos civis e os direitos humanos. A polícia, no meu governo, vai ter outra postura: o mais humilde barraco tem o mesmo direito à inviolabilidade que o palácio do rico.

“A polícia discriminar? A polícia contra as comunidades pobres, contra a favela; derrubar porta com botinaço; ficar dando tiros por aí, como quem solta foguete em festa de São João? Absolutamente, não! A polícia irá cumprir com seu dever, enfrentar os riscos e sacrifícios, mas jamais humilhar, jamais alarmar, jamais agredir o cidadão, a família e a população. Ela tem que se integrar e readquirir a confiança, o apreço e a estima com a população”.

Ciep

“Esta população não tem culpa de viver na pobreza, na miséria; e ter que fazer essa ginástica incrível para poder sobreviver. Vamos trabalhar juntos para que vocês tenham transporte eficiente; para que se urbanizem as favelas. Revoltar não existe no meu dicionário.

“Vamos, sobretudo, criar grandes centros escolares integrados para que as crianças passem lá o dia inteiro: comam de manhã, ao meio-dia e de noite; só vão para casa para dormir. Vão estudar; jogar; fazer lazer, manualidades; passar o dia inteiro na escola, numa vida sã, com assistência médica, assistência dentária”.

*Por Apio Gomes, jornalista e militante do PDT.

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