Bolsonaro, pandemia, Vargas e o lixo da História


Por Osvaldo Maneschy
31/03/2021

A jornalista Beatriz Bissio, fundadora de “Cadernos do Terceiro Mundo” com Neiva Moreira, publicou recentemente um belo artigo na revista online Diálogos do Sul sobre as reuniões preparatórias no México e a realização do “Encontro de Lisboa” em 1979, liderados por Leonel Brizola, juntando os trabalhistas que viviam no exílio com os brasileiros que combatiam a ditadura dentro no Brasil – unidos em torno da ideia de refundar o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB); e retomar o projeto de País de Getúlio Vargas, interrompido com a deposição do presidente João Goulart pelos militares em 1964.

“Fui testemunha de um sonho: a urgente necessidade de refundar o Trabalhismo”, é o título do artigo escrito por Beatriz Bissio. Link

No texto, Beatriz detalha as articulações que resultaram no encontro em Portugal, com a presença de personalidades como próprio Brizola, Dona Neusa, Neiva Moreira, Francisco Julião, Darcy Ribeiro, Doutel de Andrade, Brandão Monteiro, Jackson Lago, José Gomes Talarico, Theotônio dos Santos, Bocaiúva Cunha, Vânia Bambirra, Danilo Groff, Maria Yedda Linhares, Bayard Demaria Boiteux, Hésio Cordeiro, José Maurício Linhares, Trajano Ribeiro, Georges Michel, Paulo Timm, Jorge Roberto Silveira, Betinho, Alfredo Sirkis e tantas outras figuras importantes na refundação do Trabalhismo. Iniciativa que também teve o apoio, mas não a presença física, de líderes como Luís Carlos Prestes e Abdias do Nascimento.

Um relato rico e detalhado dos acontecimentos que levaram à criação do Partido Democrático Trabalhista (PDT), depois que o general Golbery, ainda no início da refundação do PTB no Brasil, com a ajuda de ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), surrupiou a sigla PTB de Brizola. Isto o obrigou, com a ajuda dos companheiros de anos de luta que reuniu em Lisboa, a fundar o PDT para abrigar os verdadeiros herdeiros do legado político de Getúlio Vargas – para retomar, como costumava dizer, ‘o fio da História’ do Trabalhismo.

É a própria Beatriz que, no texto, faz as perguntas: “Qual a razão de estar agora fazendo esta síntese e trazendo à tona estas lembranças?” e “Que faria, neste momento (2021, em plena pandemia), o PDT liderado por Brizola e secundado por aqueles bravos brasileiros e brasileiras? E ela mesma responde: “Possivelmente estaria denunciando o governo atual e convocando a uma grande aliança de forças progressistas (…)”.

Em seguida, Beatriz Bissio aprofunda a crítica ao PDT de hoje: “O PDT de 2021 está longe de ser o herdeiro daquele sonho” (…); “O que se constata é a nítida perda de protagonismo decorrente do abandono dos mais importantes compromissos do Trabalhismo”.

Com todo respeito e carinho que me é merecedora, permita-me discordar, companheira Beatriz Bissio. Não sem antes concordar com sua constatação de que Brizola, se ainda estivesse aqui conosco, “possivelmente estaria denunciando o governo atual e convocando a uma grande aliança de forças progressistas”. Até porque, esta foi a tônica de toda a vida de Brizola; determinação profunda que o transformou – na minha suspeita opinião de brizolista –no maior político brasileiro surgido no pós-guerra.

Seu compromisso com as causas brasileiras era tão enraizado que, no dia 29 de julho de 1984, escreveu e publicou:

“Em meu longo exílio, preparei-me para voltar. Ao ser eleito, preparei-me para defender os sagrados interesses do povo fluminense, que me honrou com a sua confiança. Vamos ver quem está com a melhor causa. E também quem possui autoridade moral e espírito público para dizer onde se encontra o interesse coletivo. Espero que me reconheçam ao menos este direito: o de transformar em diálogo o deprimente monólogo a que a população perplexa vem assistindo na atualidade”.

Todos nós temos conhecimento do bloqueio que a grande imprensa brasileira promoveu contra ele até o seu último dia de vida. Grande mídia, que Paulo Henrique Amorim apelidou de PIG, e Brizola definiu e acusou, dezenas de vezes, de agir como espécie de “partido único”, que não vacilava, para atacá-lo; e quando não encontrava na política o argumento necessário, invadia até a intimidade de sua família.

Este exercício de tiro ao alvo não começou, como podem pensar os mais jovens, a partir de sua volta do exílio. Vinha de longe, como ele sempre dizia ter vindo.

Em uma reunião no Diretório Estadual do PDT do Rio de Janeiro, no dia 4 de fevereiro de 2002, sobre a encampação da multinacional Bond and Share, ocorrida em 1959, quando governava o Rio Grande do Sul, Brizola explicou:

“(…) Mas fiquei surpreso, quando eu pratiquei aquele ato. Olha, começou uma campanha nacional: os jornais do Chateaubriand saíram a campo e… pau daqui, pau dali; briga daqui, briga dali – por toda parte. Eu passei a ser um perigo nacional. E noticiários na Europa, Estados Unidos, contra mim – fotografia nas revistas. Até na revista Time: eu a cavalo, parecia um bandido… E eu estranhava: como podem fazer isso comigo?…”.

O Partido Democrático Trabalhista, além de ser o herdeiro das bandeiras do Trabalhismo brasileiro, é e tem sido defensor de todas as causas pelas quais Leonel Brizola dedicou sua vida. Por isto, herdou – também – todo o bloqueio da grande mídia que nosso líder sempre denunciou e combateu, inclusive nos incentivando, logo no início desta, a usar a Internet.

Para citar exemplo de que o PDT continua vivo e atuante, em junho do ano passado, foi o PDT que encaminhou ao Tribunal Internacional de Haia denúncia responsabilizando Bolsonaro por crime contra a humanidade diante de sua irresponsável postura no enfrentamento à pandemia de Covid-19, no Brasil. Tragédia anunciada que, nos dias de hoje, é absolutamente real: o Brasil está a caminho de ultrapassar os Estados Unidos como o país do mundo com maior número de mortes causadas pelo Coronavírus – mortes estas que poderiam ser em sua maior parte evitadas se não estivesse à frente do governo brasileiro um presidente irresponsável.

Na peça encaminhada ao Tribunal de Haia, o PDT elencou as ocasiões em que o atual Presidente ignorou os alertas da Organização Mundial de Saúde (OMS) e de seu próprio Ministro da Saúde, comparecendo a manifestações extremistas e incentivando aglomerações sem o uso de máscara; além de acumular enfáticos discursos contra o isolamento social e a favor do funcionamento integral de todas as atividades econômicas, ignorando a doença e o número crescente de mortes. Não ficou de fora nem o pronunciamento em que chamou a Covid de gripezinha, no dia 24 de março do ano passado.

Hoje, muitos meses depois, quando o número oficial de mortos já ultrapassa 310 mil pessoas; quando a rede hospitalar do país entra em colapso e doentes morrem aos milhares diariamente sem o adequado atendimento médico, mais do que nunca se mostra atual a providência tomada pelo PDT em junho de 2020 – seguindo na linha de legítimo herdeiro do legado de Getúlio Vargas: o criador do Ministério da Educação e Saúde Pública, onze dias depois de sua posse no governo provisório, em 1930.

É bom citar também que, recentemente, no último dia 19 de março, o PDT deu entrada, no Supremo Tribunal Federal, uma ação para que o Poder Executivo seja obrigado a reabastecer os hospitais e demais estabelecimentos de saúde do país com os insumos básicos necessários ao tratamento da Covid e outras enfermidades. Já falta; ou é iminente a falta de equipamentos e remédios fundamentais: falta oxigênio, medicamentes e material para intubação de pacientes graves; além de leitos nos estabelecimentos de saúde espalhados por todo o país. Hoje, pessoas morrem em filas de esperas de UTI, nas portas de hospitais, ou em casa.

Também há a carta do presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, dirigida semana passada a dois dirigentes da Internacional Socialista, George Papandreou e Luis Ayala, pedindo o apoio da Organização para a quebra de patentes das vacinas já em uso no combate à pandemia de Covid-19. No pedido, Lupi argumenta que o atual sistema mundial de saúde “não foi moldado para lidar com pandemias”, porque enquanto a indústria farmacêutica e os países desenvolvidos lucram com as vendas de vacinas, milhares de pessoas morrem pela doença nos países pobres.

A carta cita o debate ocorrido no âmbito da Organização Mundial do Comércio, em setembro passado, quando a Índia e a África do Sul, com apoio da China e outros 80 países, propuseram a quebra temporária de patentes; mas os países ricos – EUA e União Europeia à frente – vetaram a proposta. Infelizmente, com o apoio do Brasil “graças à irresponsabilidade do Governo Federal e ao negacionismo do Presidente da República”, segundo Lupi.

Citei estes três exemplos, atualíssimos, porque, é claro, problemas também existem. Talvez o maior deles, sem dúvida, tenham sido os seis votos de deputados federais do PDT a favor do impeachment da presidenta Dilma, em 2016. E a expulsão de apenas um dos seis. Porém, é importante frisar que mudanças na legislação protegem a traição partidária e o parlamentar; embora Brizola, lá atrás, tenha nos ensinado de que a política “ama a traição, mas detesta o traidor”. O fato é que as leis vigentes para os partidos políticos hoje no Brasil protegem a traição; permitem que, mesmo expulsos, parlamentares saiam lépidos e fagueiros em busca de “pouso” em qualquer uma das mais de 30 siglas existentes no país. Legendas de aluguel que obrigam aos partidos com História – o PDT entre eles – a conviver com esta triste realidade.

Uma prática que, infelizmente, não é nova. Como nos explicou, em fevereiro de 2001, o próprio Brizola, ao citar as eleições que levaram o marechal Dutra ao poder:

“O velho Getúlio fez uma grande eleição, apoiou um candidato (Dutra), ganhou tudo, foi uma vitória grandiosa: elegeu maioria absoluta no Congresso. Lá no Rio Grande do Sul, lembro-me que entre 26 deputados federais, elegeu 22”.

Só que, por conta das traições, continuou Brizola, “no outro dia, Getúlio não tinha nem o presidente nem os deputados”. E levando o fato para o momento político que se vivia naquele ano, Brizola acrescentou:

“Nós elegemos deputados estaduais junto com Marcello Alencar. (…) Mas Marcello nos tirou mais deputados estaduais do que Garotinho. A traição de Marcello foi mais lesiva: elegemos 12, ele nos tirou dez. (…) Agora elegemos nove – mas tem alguns que ainda estão no reino da indecisão: tem o reino do sofrimento, o reino da traição e tem o reino da indecisão…”

Brizola, na ocasião, concluiu: “Vejam, não há como. Partido de massa é assim; e nós somos possuidores de patrimônios e valores. Para nós o importante é a liderança. Quem vai explicar isso aí? Os sociólogos, politicólogos estão aí discutindo isso e não sabem o que é”.

A melhor resposta do PDT ao questionamento feito pela Beatriz Bissio neste ano pandêmico de 2021, com todo carinho, está no texto escrito pelo nosso amigo comum, o jornalista e escritor José Augusto Ribeiro, na crítica que fez ao recém-lançado livro do ex-governador Ciro Gomes, pré-candidato do PDT à Presidência da República em 2022 – intitulado “Projeto Nacional, o Dever da Esperança”.

Logo na primeira página, Ciro repete a síntese escrita por José Augusto Ribeiro do que foi a Era Vargas, a trilogia de mais de mil páginas escrita pelo próprio José Augusto; para falar de seus planos, ele Ciro, para o Brasil – caso chegue à presidência da República:

“A finalidade do Estado é promover a justiça social. Mas não há justiça social sem desenvolvimento, nem desenvolvimento sem soberania”.

Ciro junta passado e futuro do Trabalhismo brasileiro no seu livro quando, nas palavras de José Augusto, explica que “mais do que um livro, a publicação é uma plataforma de governo que Ciro submete a um amplo debate, em primeiro lugar ao próprio PDT e em seguida aos outros partidos, a todas as correntes de opinião e ao eleitorado em geral”, diante dos impasses que o Brasil vive hoje governado por um extremista de direita descompromissado com os reais interesses do país e do nosso povo. Vale a pena ler a íntegra do texto (Link) de José Augusto sobre o livro do Ciro.

A eleição é no ano que vem, 2022, mas o debate precisa ser agora. A “república de Curitiba” provou que as farsas (não as de que nos falou Marx) também se repetem ao longo da História brasileira e que nós, progressistas, não podemos, jamais, esquecer o fio da História para o qual Brizola sempre nos alertou. O momento é de trabalharmos pela união, sem hegemonismos, porque quanto mais Ciro Gomes e o Plano Nacional de Desenvolvimento que prega se aproximarem do que foi a Era Vargas, estaremos no caminho correto da História.

Também não podemos esquecer que o Trabalhismo nos legou exemplos edificantes: para garantir a sobrevivência de seu legado político, Getúlio Vargas precisou dar um tiro no coração; para garantir a posse de JK e João Goulart, o Marechal Henrique Teixeira Lott precisou enquadrar os golpistas de 1955; e Brizola, para garantir a posse de Jango, precisou liderar a Cadeia da Legalidade, em 1961. Mas os golpes vieram – em 1964, em 2016.

Em conformidade com os atos corajosos daqueles que nos inspiram na luta por um Brasil justo socialmente, desenvolvido e soberano – mais do que nunca chegou a hora de trabalhar pela união de todas as forças progressistas para jogar este arremedo de política amorfa e abjeta que temos em Brasília – com apoio (tácito ou envergonhado) do partido único – no lixo da História.

 

*Osvaldo Maneschy é jornalista, filiado do PDT e Conselheiro da ABI.

· Com a colaboração de Apio Gomes.

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