O livro e as propostas de Ciro Gomes


Por José Augusto Ribeiro
02/07/2020

O prefácio do Roberto Mangabeira Unger define o novo livro de Ciro Gomes como um manual para inconformados. Sim, um manual para inconformados com a passividade e o fatalismo dos conformistas que se renderam ao arrastão neoliberal. Tanto para os inconformados que não aceitam que o mundo tenha chegado ao fim da história, como sugeriam os public relations do neoliberalismo quando ele ainda mostrava viço e vitalidade e não os sinais de decrepitude de hoje, quanto para os inconformados que se recusam a aceitar a história simplória, sustentada pela turma com menos sofisticação, de que o Brasil não tem, nunca teve e nunca vai ter jeito.

Tem jeito, sim, e já teve – responde Ciro neste Projeto Nacional, o Dever da Esperança. Já teve, nos cinquenta anos que se seguiram à Revolução de 30 e à emergência da Era Vargas, período em que o Brasil foi o país que mais crescia no mundo. E voltará a ter, embora hoje, neste 2020 em que devia estar comemorando os noventa anos da Revolução de 1930, ande com a autoestima e suas expectativas econômicas e sociais no fundo do poço.

É claro – diz o livro explícita e implicitamente – que o Brasil tem como retomar o percurso que cobriu a partir da Era Vargas e foi interrompido precisamente no início da década de 1980, em seguida à capitulação do mundo quase inteiro ao arrastão neoliberal hoje agonizante.

Mais que um livro, trata-se de uma plataforma de governo que Ciro submete a um amplo debate, em primeiro lugar ao próprio PDT e em seguida aos outros partidos, a todas as correntes de opinião e ao eleitorado em geral. Será isso prematuro? Não deveríamos aguardar que pelo menos o eventual recesso da Covid-19 nos permita a plena retomada da atividade econômica e da plena atividade política?

Creio que não. É bom que desde logo o país saiba dos planos dos possíveis candidatos, porque a eleição de 2022 – coincidindo com os duzentos anos da Independência e todas as suas sugestões e simbolismo – será a grande oportunidade de o eleitor brasileiro, depois de ter vivido como viveu a terrível experiência da Covid-19, votar contra a impostura neoliberal e decidir que o Brasil pós-Covid tem de ser muito diferente daquele Brasil de antes da Covid.

Ciro abre o livro com uma epígrafe que antecipa o sentido e o propósito de suas propostas – a síntese do pensamento de Getúlio Vargas, o fundador do trabalhismo brasileiro:

— A finalidade do Estado é promover a justiça social. Mas não há justiça social sem desenvolvimento e não há desenvolvimento sem soberania.

Entre essa epígrafe e os capítulos do livro, que estava praticamente pronto antes da paralisação imposta ao Brasil pela Covid-19, Ciro ainda teve a oportunidade de introduzir aí um pré-capítulo com o título “Antes de Mais Nada”, para estabelecer o contexto em que suas propostas poderiam ser discutidas:

— A revisão geral deste livro ocorreu antes de qualquer notícia sobre o novo coronavírus. Mas não seria possível lançá-lo agora sem acrescentar ao menos algumas palavras sobre essa que se apresenta como a maior crise econômica desde a crise de 1929 e sanitária desde a gripe espanhola. A pandemia não muda a história brasileira que descrevo aqui, não elimina a necessidade de promovermos as reformas e mudanças que proponho, mas certamente acrescentará a necessidade de se propor medidas inéditas e de encarar uma nova ordem mundial que ainda não sabemos qual será. Pretendo considerá-las em futuras edições desta obra.

— No entanto, ao mesmo tempo, a pandemia materializou alguns dos piores temores que abordei neste livro e que tornaram a necessidade de mudanças profundas ainda mais imediatas. Nos últimos dias de março de 2020, quando escrevo estas palavras confinado em Fortaleza, ainda é cedo para estimar como vamos sair desse drama político, econômico e, principalmente, sanitário. Mas como quer que saiamos, acredito que o Brasil e o mundo nunca mais serão os mesmos.

— O neoliberalismo nos trouxe até aqui. Mas não nos tirará daqui. E como podemos ver agora, de repente o mundo inteiro recorre, novamente, ao keynesianismo. A Europa pede um novo Plano Marshall. Os EUA pedem um novo New Deal. É claro que nós, no Brasil, temos que pedir um novo plano de recuperação como o de Vargas, em 1930.

A AUDITORIA DA DÍVIDA

Aqui vou atropelar a ordem de exposição do livro para ir direto a uma de suas propostas mais enfáticas, já na página 95:

— O único gasto público [no Brasil] que ultrapassa, e muito, a média mundial é o gasto com os juros da dívida pública. Essa política suicida fez do Brasil o paraíso do parasitismo, onde uma renda segura e fácil remunera melhor que qualquer atividade produtiva bem-sucedida. Esse modelo, que só serviu a uma minoria de 20 mil famílias, chegou ao seu limite. Se o Brasil não compreender isso profundamente, não teremos como sair da terrível crise em que nos encontramos…

— Com a garantia intransigente do cumprimento dos contratos, sem dar margem a aventuras, temos que obedecer à ordem constitucional ainda não cumprida de promover uma auditoria da dívida pública. É fundamental que a sociedade saiba, transparentemente, quanto custa sua dívida e como ela se estrutura, como foi contraída, com que contrapartidas, quem ganha com ela, o quanto dela já foi pago e, principalmente, se não há embutida nela qualquer fraude ou ilegalidade.

Na página 179, em outro contexto, Ciro acrescenta:

— Somos milhões de brasileiros – entre os quais empresários, operários, autônomos, comerciários, servidores públicos, trabalhadores rurais e aposentados, intelectuais, artistas – levados ao limite de nossa capacidade de suportarmos a exploração para enriquecer ainda mais uma casta de 0,01% de privilegiados. Pessoas que recebem essa riqueza sem qualquer origem meritória e sem que por ela tenham produzido ou arriscado qualquer coisa. Somos uma nação devastada por agiotas.

Em 1988, quando a Constituinte incluiu nas disposições transitórias da Constituição a exigência dessa auditoria, o problema era a dívida externa que estrangulava a economia brasileira e se alimentava de mecanismos vampirescos: quanto mais pagava, mais o Brasil devia. Hoje o Brasil de mais de 200 milhões de habitantes sangra o tempo todo em benefício de 20 mil famílias.

A dívida externa era um grande problema há noventa anos, quando Getúlio Vargas assumiu a Presidência da República com o título de Chefe do Governo Provisório da Revolução de 30. Já em 1931, Getúlio promoveu a primeira e até hoje única auditoria da dívida brasileira. Hoje, depois de dizer que temos de pedir um novo plano de recuperação como o de Vargas em 1930, Ciro anuncia que vai promover afinal a auditoria prometida pela Constituição e com isso retoma uma das medidas-chave com que Getúlio e a Era Vargas permitiram ao Brasil tornar-se o país que mais crescia no mundo.

Para que se tenha uma ideia do que pode resultar de uma auditoria da dívida pública de um país, basta lembrar o que Getúlio conseguiu a partir de 1931. O primeiro passo foi colecionar, inventariar os contratos e outros documentos da dívida que era cobrada. Esse trabalho aparentemente inofensivo revelaria que apenas 40% dos empréstimos estavam documentados, o que abria caminho para o Brasil discutir o que de fato devia e tinha de pagar ou negociar.

Em 1934 teve início um novo estágio da auditoria, para a definição das bases em que deveriam ser efetuadas as remessas relativas ao serviço da dívida, conforme a capacidade de pagamento do Brasil. Os empréstimos foram classificados em oito categorias e, para cada uma delas foi definida uma redução da taxa de juros contratual, redução essa que alcançou percentuais de 65%, 72,5%, 80% e até 82,5%.

Graças a isso, a dívida registrada caiu de 1.29 bilhão de dólares em 1930 para pouco mais que a metade, 698 milhões em 1945 e para ainda menos, 597 milhões em 1948, quando Getúlio já estava por três anos fora do governo. Houve também uma redução do serviço da dívida proporcionalmente às exportações: os pagamentos caíram de 30% em 1930 para 7% em 1945, e o Brasil pôde respirar aliviado e fazer os investimentos públicos que o transformaram no país que mais crescia no mundo.

BRIZOLA E A PROPRIEDADE PARA TODOS

De Getúlio e da auditoria da dívida – e de novo desobedecendo à metódica exposição do livro – vou saltar para Brizola, na página 173, e para ideias, convicções e expectativas que ele sustentava com firmeza e emoção e que algumas vezes confundiam e assustavam seus adversários menos atentos ou perceptivos.

De fato, a alguns destes soaria paradoxal o que o socialista Brizola dizia sobre a questão da propriedade privada.

Já na contagem regressiva para sua candidatura na eleição presidencial que se realizaria em 1989, Brizola, em 1988, deu uma entrevista que teve um lance pouco conhecido hoje, mas definitivo, sobre sua verdadeira posição e sobre a posição de seus adversários.

Nesse ano, o ano em que foram votados todos os dispositivos da nova Constituição, o empresário Henry Maksoud, diretor da construtora Hidroservice e dono da revista Visão, manteve um programa semanal de entrevistas na TV-Bandeirantes, apresentado por ele próprio e destinado a discutir suas ideias ultra-neoliberais.

Maksoud era um ativista aguerrido dessas ideias e chegou a trazer ao Brasil, para palestras em universidades, o economista austríaco Friedrich Hayek, o grande adversário de Keynes e fundador daquilo que se converteu no breviário neoliberal implantado no mundo na virada de década de 1970 para 1980, a partir dos governos de Margaret Thatcher na Inglaterra e de Ronald Reagan nos Estados Unidos.

Como não era jornalista, Maksoud, nesse programa, tratava seus entrevistados não como um entrevistador disposto a fazer perguntas que levassem o entrevistado a expor seus pontos de vista, mas como um debatedor que, para contraditar as do adversário, defende com unhas e dentes as próprias opiniões. O programa tinha o nome de “Henry Maksoud e Você”, mas era conhecido nos corredores da Bandeirantes (onde eu então trabalhava) como “Henry Maksoud e ele mesmo”, tal a carga de autorreferência que continha.

Maksoud um dia convidou Brizola para o programa – e Brizola, que gostava de desafios como esse e sabia tirar partido deles, aceitou. Maksoud se conduziu na entrevista como sempre se conduzia e a certa altura perguntou com uma insolência que não seria permitida a um jornalista:

— Então, governador, esse seu socialismo moreno vai acabar com a propriedade privada no Brasil?

Brizola nem sequer se irritou com o tom da pergunta. Num tom tranquilo, paciente e bem humorado, foi explicando:

— De modo nenhum, Sr. Maksoud, de modo nenhum. O que nós não queremos é que a propriedade privada seja privilégio de poucos. Nós gostamos tanto da propriedade privada que queremos estendê-la aos que não a têm. Nós queremos a propriedade para todos.

Como não era jornalista e não tinha aprendido a ouvir sem reagir impensadamente, Maksoud não soube se controlar e perguntou, com ar de surpresa e na verdade de medo:

– Para todos, governador?

A palavra “todos” foi dita com muita ênfase.

— Sim – respondeu Brizola com a mesma ênfase. – Para todos. Queremos a propriedade para todos. O senhor é contra?

A verdade – e isso a pergunta final de Brizola deixou claro – é que para Maksoud, como para Hayek e todos os pregadores do arrastão neoliberal, a propriedade não deve e não pode ser para todos, só para os privilegiados pela herança ou pela sorte. Para o neoliberalismo, como para as correntes ultraconservadoras anteriores, a ideia da propriedade para todos era inaceitável.

Mais de trinta anos depois, Ciro retoma essa expectativa da propriedade para todos e amplia seu alcance em função das mudanças que a história e a tecnologia produziram nesse intervalo.

— O progressismo do século XXI – diz Ciro – deveria defender a iniciativa privada e o microempreendedor do poder sem limites dos grandes conglomerados e corporações. Da mesma forma, deveríamos defender a democratização e a generalização da propriedade privada, e não sua posse pelo Estado, porque hoje vivemos num mundo em que cidadãos em suas casas podem ser cada vez mais proprietários de bens de produção. Essa também é uma revolução que nossa sociedade está começando a experimentar e que acaba não com o trabalho, mas com os empregos. Em vez da oposição à propriedade privada de alguns bens de produção, devemos lutar é por sua universalização.

Ao defender a propriedade para todos, Brizola pensava também em bens de produção, objeto de sua luta pioneira pela reforma agrária no Rio Grande do Sul, e, claro, no escândalo das favelas no Brasil e na vergonha da sub-moradia entre nós, objeto de seu programa “Cada Família um Lote”, no governo do Rio.

Na campanha presidencial de 1994, na qual trabalhei como seu assessor de imprensa, Brizola, na linha do que hoje Ciro propõe, falava muito em oportunidades de trabalho sempre que se discutia a questão do emprego. Muito se falava nessa campanha em metas de criação de emprego, mas Brizola não queria iludir ninguém: o neoliberalismo e a automação já destruíam empregos em massa. Brizola pensava nas oportunidades de trabalho que a reforma agrária poderia gerar, direta e indiretamente, e também no que as demandas do mercado interno podiam viabilizar, uma vez retomados índices promissores de crescimento econômico, para profissionais autônomos, de médicos e engenheiros a modestos carpinteiros e eletricistas, e também para pequenos empreendedores com talento e senso de oportunidade. Hoje ele certamente se associaria ao que Ciro escreve na página 166 de seu livro:

— Apesar de parecer fantasioso, já vemos acontecer isso no mundo em setores como a energia elétrica (através da produção de energia solar em casa e conectada à rede pública de distribuição) e com as impressoras 3D. Setores inteiros da economia desapareceram e foram substituídos por softwares em nossos computadores pessoais. Temos hoje verdadeiros estúdios de música, vídeo e editoras dentro de casa. Está próximo o dia em que boa parte das atividades econômicas poderá ser desempenhada assim ou em cooperativas locais.

A pandemia da Covid precipitou uma grande onda de trabalho em casa, via internet, a partir da experiência antes acumulada pelas iniciativas que Ciro mencionou. Numa próxima edição que já previu, ele evidentemente vai entrar nessa questão. Ela, aliás, já está na agenda do governo da Nova Zelândia, um dos mais bem sucedidos no mundo no enfrentamento do coronavirus. Agora, ao retomar a atividade econômica plena, disse a Primeira-Ministra Jacinda Arden (que pertence ao Partido Trabalhista neozelandês), dois temas serão discutidos prioritariamente – a redução para quatro dias da semana de trabalho e a ampliação das oportunidades de trabalho em casa.

Ainda sobre a questão da propriedade privada e da posição do trabalhismo brasileiro, Ciro diz (página 173):

— Ele [o trabalhismo] advoga um modelo político e econômico que equilibra a garantia da propriedade privada com sua função social. Esse equilíbrio se expressa de forma muito feliz na famosa frase de Leonel Brizola: “A propriedade privada é uma coisa tão boa, que a queremos para todos”.

Frase, acrescento eu, que tanto assustou o plutocrata Henry Maksoud.

AS POSSIBILIDADES DA CONSTRUÇÃO CIVIL: REFORMA URBANA?

Naturalmente um livro de Ciro teria de insistir em sua permanente e antiga denúncia do processo de desindustrialização do Brasil.

— A indústria de transformação, que já respondeu por 35,9% do PIB nacional, tem hoje níveis de participação no PIB próximos aos cerca de 10% que alcançava em 1910 – escreve ele na página 108. E acrescenta:

— A estratégia segura e realista para começar, pela lei do menor esforço, é a eleição de setores sem grande sofisticação tecnológica e que agreguem valor a produtos que exportamos em estado bruto, em que dispomos de uma base primária sólida e vantagens comparativas. Mas não podemos parar por aí.

— Também devemos levar em conta setores nos quais já possuímos plantas e tecnologias sofisticadas próprias, como é o caso do setor aeroespacial. A tratativa para a entrega da Embraer ao capital estrangeiro, além de ser um dos maiores crimes já cometidos contra nossa soberania, é um completo contrassenso comercial.

Junto ao setor aeroespacial, Ciro elencou o complexo industrial de petróleo, gás e bioenergia, o complexo industrial da saúde, o complexo industrial do agronegócio e o complexo industrial da defesa como os setores “nos quais já possuímos plantas e tecnologias sofisticadas próprias” e que devem, por isso, receber prioridade e ação governamental imediata.

Associada a esses complexos industriais, Ciro incluiu nas prioridades de uma nova política industrial a reativação da construção civil. E escreveu:

— Para além desses quatro complexos industriais estratégicos, devemos executar imediatamente, independentemente do necessário ajuste das contas públicas, um plano de reativação da construção civil nacional, que usa muita mão de obra e tem rápido impacto no emprego e na renda. É uma área em que o Brasil tem inegável expertise. Penso que, além de eliminarmos definitivamente o déficit de moradia no Brasil, deveríamos celebrar como espinha dorsal desse projeto um grande plano de metas de transporte público.

Ao propor a eliminação definitiva do déficit de moradia no Brasil, Ciro antecipou-se ao que se tornaria evidente assim que o pânico do coronavirus levou as TVs a mostrar os perigos da favela – não só para os favelados, na aglomeração de sua moradia, muitas vezes sem água e condições mínimas de higiene, mas também para os outros habitantes das cidades, inclusive os mais ricos deles.

Agora o país inteiro – e até mesmo o mercado financeiro sempre insensível à questão social – sabe que não é possível proteger os ricos sem proteger os pobres. E já que é inevitável a volta a Keynes e ao gasto público, agora pode ser viável escolher como prioridade um grande programa habitacional que seja o começo do fim da vergonha das favelas.

A esse projeto, Ciro associa um grande plano de metas de transporte público, cujo objetivo, naturalmente, seja a eliminação dessas verdadeiras favelas circulantes e temporárias que são ônibus carregados de aglomerações humanas nas horas de pico.

Se a essas propostas for viável acrescentar alguma coisa do que aprendemos com as experiências de trabalho em casa, via internet, desencadeadas pela quarentena da Covid-19, teremos um primeiro passo e poderemos evoluir para uma experiência revolucionária de reforma urbana.

Infelizmente este artigo já está longo demais e não vai ser possível examinar os quatro complexos industriais em que o Brasil já tem avanço tecnológico suficiente para evoluir competitivamente nos próximos anos. Mas este resumo não pretende substituir-se ao livro, pretende apenas chamar atenção para ele, despertar interesse por ele e, exemplificativamente, não exaustivamente, tratar de algumas de suas propostas sobre as quais Ciro não tem sido perguntado nem tem tido oportunidade de falar em suas muitas entrevistas desde o lançamento do livro.

Vamos então às propostas de reforma política de Ciro, antecedidas do que ele diz, de passagem, sobre a Lava Jato. Ela destruiu o pacto político com o qual o país buscava seu caminho desde o fim do regime militar de 1964 e tornou inevitável o governo Bolsonaro. Por isso a reforma política é um pressuposto da retomada de nosso desenvolvimento em bases democráticas.

O EFEITO LAVA JATO E A REFORMA POLÍTICA

— A Operação Lava Jato – diz Ciro – poderia ter prestado um serviço importante e histórico ao Brasil, que sofre cronicamente com a impunidade das classes política e empresarial … A força-tarefa da Lava Jato muitas vezes não agiu com a responsabilidade requerida para operação tão crucial, desprezando a preservação dos empregos e riquezas produzidas pelas empresas envolvidas, como ocorre em todo o mundo desenvolvido. Corrupção é praticada por pessoas físicas, não por empresas. Devemos punir as pessoas responsáveis pela corrupção, condenar CPFs, não CNPJs.

— O resultado é que a Lava Jato comprometeu cadeias inteiras de nosso já combalido setor industrial, particularmente a cadeia do petróleo, indústria naval e engenharia civil, causando um impacto no PIB que já pode ter ultrapassado os 5% desde agosto de 2014. Sem contar a paralisação do programa nuclear brasileiro, fato que merece apuração mais aprofundada.

— Ainda gostaria de lembrar – conclui ele nessa passagem pela Lava Jato – que a destruição econômica do país não é causada por esses desvios éticos, mas sim por nossa desindustrialização e escoamento de nossos recursos para os juros da dívida interna. Apesar do terrível impacto moral na sociedade, razão pela qual o combate à corrupção não deve ter tréguas, seu impacto no orçamento nacional é extremamente limitado, ao contrário do que a imprensa faz parecer. Mesmo porque a corrupção leva predominantemente um percentual dos recursos para investimento do Estado, e em 2017 os investimentos federais foram previstos em 1,4% do orçamento. Enquanto isso, perdemos quase 10% deles no pagamento de uma das taxas de juros mais altas do mundo.

Como, agora, reconstruir a vida política do país sem recair no presidencialismo de coalizão que levou o Brasil a Bolsonaro e pode levar ao fim do governo Bolsonaro antes do fim de seu mandato?

— Não é de hoje – responde Ciro (pg. 125) – que advogo a necessidade de uma reforma política que diminua os impasses provocados pelo presidencialismo atual. Pouca coisa se acrescentou à minha opinião manifesta em 1996. Basicamente, se tornou mais premente para mim a necessidade de criarmos, no Brasil, mecanismos de recall que possam moderar a marketagem e as promessas mentirosas antes das eleições. A democracia brasileira não sobrevive mais a tanta mentira.

O recall é uma consulta pelo voto direto ao eleitorado, uma espécie de plebiscito para que no meio do mandato presidencial o próprio eleitor decida se o Presidente deve continuar ou deve sair do cargo. Podemos imaginar hoje como seria um recall no caso de Bolsonaro.

Ciro propõe também o voto distrital misto, cujas vantagens já foram muito discutidas nos últimos anos, mas que é muito difícil aprovar, pelo quórum de três quintos das emendas constitucionais, num Congresso em que cada deputado terá de pensar na própria reeleição. Para isso, Ciro tem uma alternativa que valerá também para suas outras propostas de reforma política e igualmente para eventuais impasses na condução da política econômica e das reformas sociais.

Antes de examiná-la, porém, é preciso expor o que ele propõe para a eleição do Presidente da República, do Congresso Nacional, dos governadores e assembleias estaduais – a eleição em três turnos (pg. 126):

— A eleição em três turnos, com um intervalo de um mês entre eles, realizaria no primeiro a eleição de presidente e governadores. No segundo turno, concluiria as eleições majoritárias não resolvidas no primeiro. No terceiro turno, realizaria as eleições para os legislativos federais e estaduais.

Esse terceiro turno só aconteceria depois de eleitos o Presidente e os governadores e a tendência seria maior concentração de votos nos candidatos identificados com os eleitos e, portanto, a formação de bases de apoio mais sólidas e estáveis e sem os “centrões” que se formam no primeiro turno.

Outra proposta, muito ajustável ao sistema distrital misto, seria (pg. 127) a diminuição gradual do número de cadeiras na Câmara Federal:

– Como está hoje – exemplifica Ciro – se cada deputado falasse dois minutos por sessão, essa sessão levaria dezessete horas.

Essa ideia talvez seduza aqueles eleitores que foram induzidos a ver na atividade política uma coisa indecente e a considerar desprezíveis todos os detentores de mandatos políticos. Por isso é uma ideia a considerar.

A reforma política proposta por Ciro inclui ainda a questão da urna eletrônica, que figura na agenda prioritária do PDT desde antes de sua introdução, desde o escândalo Proconsult em 1982, contra a eleição de Brizola para o governo do Rio. Nessa ocasião, o voto ainda era manual, mas a apuração foi computadorizada e a fraude acontecia na apuração.

O que Ciro propõe é um avanço, não qualquer retrocesso, é a adoção de urnas eletrônicas de terceira geração:

— As urnas eletrônicas brasileiras, de primeira geração – diz ele – estão bastante ultrapassadas e são proibidas em quase todos os países do mundo. Elas têm gerado, eleições após eleições, maior desconfiança da população quanto à sua segurança.

Ciro encerra o capítulo da reforma política – e aqui encerro este resumo de alguns exemplos de suas propostas – com uma sugestão ao PDT (pg. 128):

— Pretendo propor ao PDT apresentar esse projeto de Reforma Política, negociada com a OAB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), ainda nesta legislatura. Caso haja resistências fortes a pontos específicos da reforma, teríamos duas opções. A primeira seria implantá-la de forma parcelada pelas próximas eleições para diminuir a resistência dos eleitos pelo sistema atual. A segunda seria a convocação de plebiscito popular na forma da Constituição.

Ciro quer a reforma política já, e sugere que o PDT comece a conversar sobre ela com a OAB, a CNBB e a ABI – uma primeira oportunidade, uma sondagem que se destina sobretudo a verificar que reações e resistências pode suscitar a ideia de plebiscitos para romper impasses inevitáveis na condução de mudanças, avanços e medidas como o voto distrital misto, a auditoria da dívida pública, a defesa da iniciativa privada e do microempreendedor diante do poder sem limites dos grandes conglomerados e corporações e, principalmente, a questão da propriedade para todos e não apenas para uns poucos privilegiados.

*José Augusto Ribeiro é jornalista e escritor. Autor da trilogia “A Era Vargas”, o mais completo livro sobre a vida e obra do presidente Getúlio Vargas; e  “Tancredo Neves, a Noite do Destino”,  biografia lançada em 2015.

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