O esgotamento do fiscalismo à brasileira


Monica de Bolle
06/01/2023

As falácias ainda são facilmente engolidas por parte da mídia

Hoje é dia 4 de janeiro. Estamos no 3° dia do novo governo. No 3° dia já há gente dizendo que tudo está sendo feito de forma errada na economia “apesar da herança de Bolsonaro”. Para quem tem o privilégio e, muitas vezes, o desprazer, de observar o Brasil de “longe”, os alardes soam absurdos.

Como é possível estar tudo errado na economia no 3° dia de um governo? Como é possível fazer tais afirmações taxativas sem que existam outras intenções? Existem outras intenções.

Há alertas e críticas que são feitos para o bem do País, mas não esses. Esses pretendem apenas continuar a ocultar aquilo que se torna cada vez mais visível para a população: o fiscalismo é tão somente defesa de interesses por intermédio do uso de falácias econômicas.

As falácias ainda são facilmente engolidas por parte da mídia, mas não mais por quem sentiu o resultado do fiscalismo diretamente: a avenida aberta para a ascensão de Bolsonaro.

Reza o fiscalismo que programas sociais são inflacionários.

Direcionar tantos recursos aos + pobres causará danos profundos a essas mesmas pessoas pela via inflacionária. Examinemos esse argumento, e quem são as pessoas q o defendem.

Comecemos com a Selic, a taxa de juros de referência determinada pelo Banco Central, de 13,75% ao ano. Lembremos q a inflação estimada para 2022 é de cerca de 5,8%. A taxa de juros real é a diferença entre os juros nominais (a Selic, por exemplo) e a inflação. Logo, os juros reais brasileiros estão em inacreditáveis 8%, ou perto disso. Não há país no mundo que chegue perto de tamanho desequilíbrio.

Quem são as pessoas que soam alarmes inflacionários quando se fala em despesas com programas sociais? Por óbvio não  são aquelas por eles beneficiados, mas aquelas que não querem ouvir falar de reformas tributárias progressivas, ainda que falem em “necessidade de reforma tributária”.

Os fiscalistas há anos dizem que a carga tributária brasileira já é demasiado elevada. Ora, elevada para quem? Não para eles, cuja renda é majoritariamente composta de lucros e dividendos — renda que, no Brasil, não é tributada. Os fiscalistas, em sua maioria, são subtributados.

Mas não é “só isso”. Os fiscalistas no Brasil, muitos donos ou sócios ou associados a fundos de investimento, também pagam poucos impostos como proporção da renda, visto q os tributos no Brasil recaem, sobretudo, no consumo.

Quem paga mais tributos sobre o consumo? Como proporção da renda, são os mais pobres, não os mais ricos. Programas sociais para os mais pobres, vejam só, até se autofinanciam em parte: como a carga tributária incide sobre o consumo e os mais pobres consomem mais, essas pessoas ajudam a elevar a receita do governo que paga, em parte, pelos programas que recebem.

Não para aí a hipocrisia. Quem recebe o grotesco diferencial de juros da dívida com a Selic nas alturas? Os detentores de títulos públicos. E quem são eles? Ah, adivinhem… São os mesmos que só falam de despesa primária e sequer tocam na despesa financeira do governo. Por quê? Porque a despesa financeira do governo, os pagamentos de juros exorbitantes para lá de incompatíveis com a inflação estimada e esperada, representam uma parte da renda que credores/fiscalistas recebem. Está dado o conflito distributivo e a historinha fiscalista.

Para ocultar os ganhos que recebem e que, simultaneamente, paralisam a economia — quem em sã consciência vai investir quando as taxas de juros reais estão em 8%? — vendem as falácias econômicas nos jornais e em parte da imprensa. Quanto mais alarde, melhor.

Ocorre que a discussão da PEC de Transição, entre outros debates recentes, expôs aquilo que  se oferece como “responsabilidade fiscal”. Tentaram de toda forma — por meio de cartas, entrevistas, colunas — impedir que os programas sociais fossem devidamente financiados.

Mas eis que os programas sociais estão enquadrados na Constituição Federal como Direitos Fundamentais. Rebaixá-los equivale a rebaixar a força normativa da Constituição. Durante seis  anos, foi exatamente isso que  o Teto de Gastos defendido por fiscalistas fez. Quando se rebaixa a Constituição, abrem-se as portas para o desfile dos anti-democratas. A ultradireita anti-democrática é fruto do fiscalismo excessivo que enfraqueceu a Constituição, queiram os fiscalistas aceitar o resultado de sua tecnocracia cega ou não. Nada nesse mundo escapa às forças da política, nem mesmo o puritanismo tecnocrático.

Com a derrocada do Teto, temos a chance de não mais permitir o rebaixamento da Constituição. Temos a chance de enquadrar a discussão econômica dentro dos marcos constitucionais, e não tratá-la como algo que transcende a Lei das Leis.

Temos a chance de olhar a hipocrisia nos olhos e de dizer “Chega”. O fiscalismo hipócrita está em vias de esgotamento.

(*)  Monica de Bolle é PHD em Economia e leciona na John Hopkins University. 

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