O ensurdecedor barulho do silêncio

Imagem: Leandro Aguilar/ por Pixabay

Por Renata Gabert de Souza
20/06/2020

“O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”
Martin Luther King

Em 20 de junho comemora-se o Dia Nacional do Advogado Trabalhista. A reflexão é: o que comemoramos?
Comemoramos a capacidade de resistir, de lutar incansavelmente, de ser resiliente, de não desistir, de reinventar.
A advocacia trabalhista é um exercício de advocacia social por excelência, dado que a matéria de que trata, a relação de trabalho e emprego, é exercício de cidadania, faz parte de um sistema social.

Afinal, neste orbe terreno, o embate se dá entre as teorias liberais, empreendedorismo, industrialização, rentismo, economia, mercado, labor, consumo, sociedade, bem estar social, e …. as visões mais socialistas desta mesma sociedade. Então, do que falamos?

A existência humana vive em ciclos. Como uma roda, há um tempo no alto, há um tempo no chão. O que importa em como se sobe ou como se desce é a discussão que se trava neste movimento, são as garantias de evolução social, são as garantias de estabilidade, de solidez, ou não.

Então quando olhamos a história, vemos claramente esse movimento: trabalho escravo, artesãos independentes, prestadores de serviços independentes que buscam proteção de senhorio, novamente o trabalho escravo, lutas por direitos e liberdade, revolução francesa, liberdades, revolução industrial, exploração do trabalho, formação de sindicatos e a luta por melhoria de condições de trabalho e salario, classe trabalhadora conquista maior estabilidade e condição de vida, surge a automação, novamente o lucro contra o trabalho, os estudos de Marx sobre esta relação e a venda da força de trabalho e sua relação com o ganho e o lucro, a industrialização, o capital na industrialização, a automação, a perda do valor do trabalho, a perda do posto de trabalho, o capital pelo capital, a financeirização.

Os jornais dão conta de um movimento mais conservador ‘no mundo’, e, com a globalização tais movimentos são mais rápidos, independentemente da evolução de cada país, ou da situação social que ele apresente. Assim que, os efeitos do avanço do capital financeiro são mais danosos em algumas sociedades, que em outras.
O que diferencia? A estabilidade das conquistas anteriores.

Falando do nosso país, estamos experimentando a descida vertiginosa, muito mais rápida do que muitos dos trabalhadores conseguem perceber (só identificam após) quando definitivamente atingidos pelas perdas.
Por que?
Por que uma parcela da sociedade percebe estarrecida o que está acontecendo dia após dia, em um movimento social que surge em 2013, que avança mas é fortemente refreado pelos forças de quem domina o mercado, e de 2016 em diante, as vozes que deviam bradar em defesa de si próprios, são silentes?

Por que após suprimidos os direitos que propiciavam uma mínima estabilidade ao trabalhador, sem ruídos, estes seguem como que anestesiados de si mesmos, perdidos, sofrendo com a incapacidade de o fruto de seu trabalho dar o sustento mínimo de alimentação e moradia, rumo à miserabilidade, silentes?

Lembro da música de Chico Buarque, Construção …
“E tropeçou no céu como se fosse um bêbado / como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse um pássaro / sábado / um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote flácido / tímido / bêbado
Agonizou no meio do passeio público / náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego / público / sábado”

Chico Buarque diz que a emoção da composição estava nas palavras, que ele vive em sociedade e sente as pessoas, e que, ao colocar um homem no meio das palavras, a emoção muda de lugar. A letra é de 1970.
Em 1969 o Brasil vivia a Ditadura Militar, absolutamente repressora e pouco afeta aos direitos sociais. A economia caminhava rumo firme ao liberalismo e, atendendo ao mercado, foi alterado o contrato de trabalho permitindo-se que o trabalhador deixasse de conquistar a estabilidade do emprego e fosse indenizado através do Fundo de garantia. Assim, qualquer trabalhador da iniciativa privada passou a ser demitido a qualquer tempo. Bastava indenizar. Observo que o FGTS funciona como uma poupança, cujo valor recolhido fomenta a construção civil e os rendimentos desta aplicação são 50% do que se paga à caderneta de poupança.

É claro que houve avanços, mormente após a Constituição Federal de 1988, conquista da sociedade que se libertava das amarras de uma feroz ditadura, e almejava construir um país bom para se viver, transformar-se em uma sociedade de bem estar social, mais humana, mais liberta, com educação e saúde para todos, com trabalho digno, salários compatíveis, com menos diferenças entre as pessoas e classes sociais.

De lá para os dias atuais, sem sequer regulamentar todos os direitos ali postos como conquistas, iniciou o caminho da perda. O trabalhador foi identificado como colaborador, como tal, perde a identidade; ilusão de uma igualdade inexistente; trabalha, compete com a máquina, a empresa precisa de lucros; os trabalhadores descaracterizados de si não atingem a conquista de estáveis condições de moradia, educação, alimentação; a indústria, por sua vez, tem capacidade ociosa, demite; trabalhador sai da estatística para ser um invisível, ‘empresário de si mesmo’, dizem alguns; o trabalhador é responsabilizado pelos custos da economia, não é mais uma categoria, a agremiação sindical é relativizada, desnecessária, convencidos de que não atende mais o momento social; o ‘trabalhador’ recebe o direito de ser dono de si e é levado a negociar sozinho com o empregador; não há mais fragilidade, inexiste hipossuficiência … dizem …

Agora a pandemia. Para além da saúde e vida, que estão em primeiríssimo lugar, sim, e sem entrar no falso dilema, desde há muito não é tão claro que o trabalhador é primordial para a economia e não o responsável pelo seu infortúnio, vide a insistência do empresariado e da clássica classe média em requerer insistentemente que o trabalhador volte ao seu posto, se não, a economia não anda. Porque ele é, a salvação da lavoura ….
Não importa que morra: atrapalhando o tráfego, o público, o sábado.

Estamos tão contaminados que não percebemos que há desnível? que estamos caindo? que o poço está logo ali?
O silêncio grita ensurdecedoramente em meus ouvidos e mente: Hei! Vamos à luta!!! Somos trabalhistas, pleiteamos por equidade de forças, pela oportunidade de trabalho digno, pelo funcionamento da indústria, do comércio, dos serviços, pela relação de emprego e trabalho.

Eu tenho um sonho, parafraseando alguém que um dia foi calado, cuja voz silenciada ecoa, ainda hoje, em todas as mentes e corações, dos que ousam sonhar e são esperançosos em conquistar.

 

*Renata Gabert de Souza é advogada, integrante da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista OAB/RS, membro dos Diretórios Estadual e Nacional do PDT, integra o Movimento dos Advogados, vice-Presidente do Movimento Comunitário Trabalhista (MCT-RS), e membro da Comissão de Ética da Ação da Mulher Trabalhista (AMT-RS).

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