“Não é através da segurança pública que vamos promover transformações sociais”, avalia Orlando Zaccone


Conjur
11/07/2022

Pré-candidato a deputado federal, delegado da Polícia Civil é uma das lideranças do “Movimento dos Policiais Antifascismo”

O Brasil tem uma das polícias que mais mata no mundo. Embora tenha havido uma redução de 4% em relação a 2020, 6.145 pessoas foram mortas por intervenções de policiais militares e civis no ano passado, de acordo com dados do 16º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 28 de junho.

O delegado de Polícia Civil do Rio de Janeiro Orlando Zaccone não acredita que controles jurídicos possam reduzir a letalidade policial. Ele cita que, mesmo com a decisão do Supremo Tribunal Federal de restringir as operações em favelas durante a epidemia de Covid-19 a casos excepcionais, as mortes não pararam de acontecer — em 2021, 1.356 pessoas perderam a vida por ações policiais, também segundo a pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. E o Ministério Público, ao constantemente mandar arquivar investigações sobre tais mortes, legitima juridicamente a violência praticada pelas forças de segurança, diz.

Para mudar esse cenário, é preciso estabelecer um controle político mais efetivo das polícias, opina Zaccone, citando, por exemplo, o afastamento de agentes que participem de ações letais. Ele também defende a implementação de medidas de contenção da força policial, como protocolos de uso de armas de fogo e a inserção de câmeras nos uniformes dos agentes. E é favorável à legalização das drogas — afinal, a violência policial, principalmente no Rio, é fundada na repressão à venda de entorpecentes ilícitos, analisa.

Zaccone é pré-candidato a deputado federal pelo Rio de Janeiro pelo PDT. Ele é integrante do Movimento Policiais Antifascismo, que busca construir uma alternativa à “bancada da bala” no Congresso Nacional. Algumas das principais propostas do grupo são a desmilitarização da polícia e a criação da polícia de ciclo completo — ou seja, uma corporação que exerça policiamento ostensivo e investigue os crimes. Hoje, tais funções são divididas entre a Polícia Militar e a Polícia Civil. O grupo também busca ampliar a discussão sobre criminalidade e violência.

“Nós entendemos que o debate de segurança pública é limitado, porque não é através da segurança pública que vamos promover transformações sociais. Se queremos transformações, precisamos sair da bolha da segurança pública e debater educação, habitação, mobilidade social, entre outros temas. De certa forma, tudo isso tem reflexo na segurança pública”, pondera Zaccone.

O delegado critica as leis penais brasileiras. “É tudo feito a toque de caixa, visando dar respostas legislativas para alguns crimes que geraram repercussão social”. Conforme ele, tal processo gera “inflação penal”, o que aumenta a seletividade do sistema de Justiça Criminal e a sensação de impunidade — que é distorcida, uma vez que o Brasil tem 920 mil presos, segundo dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça.

Na visão Zaccone, é preciso acabar com a crença de que a prisão é o meio de resolver os conflitos sociais. Até porque a maioria das questões que hoje são tratadas pela área penal poderiam ser solucionadas pelas esferas cível ou administrativa. Além disso, ele defende que operadores do Direito tenham mais consciência ao aplicar as leis. Por exemplo, com uma aplicação mais efetiva das medidas cautelares alternativas à prisão, seria possível, sem reforma legal, reduzir consideravelmente a população carcerária.

O delegado ganhou notoriedade ao desvendar a farsa do desaparecimento do pedreiro Amarildo, em 2013, na favela da Rocinha, zona sul do Rio. A linha de investigação original o associava ao comércio ilegal de drogas e dizia que ele havia sido assassinado por traficantes. Zaccone questionou essa narrativa. Posteriormente, foi comprovado que Amarildo desapareceu após ser levado por policiais militares para as dependências da unidade de polícia pacificadora (UPP) instalada na Rocinha. Oito PMs foram condenados pela tortura, morte e ocultação do cadáver do pedreiro.

Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes, Orlando Zaccone é autor dos livros “Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro” e “Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas”, ambos publicados pela editora Revan.

Leia a entrevista:

ConJur — Por que o senhor decidiu se candidatar a deputado federal?

Orlando Zaccone — Em 2018, eu me candidatei a deputado federal pelo Psol. A minha candidatura, tanto naquele ano quanto neste, está inserida na construção do Movimento dos Policiais Antifascismo. A ideia é levar representações das forças de segurança para o Legislativo.

O Movimento Policiais Antifascismo é um movimento suprapartidário, mas de partidos de esquerda. Buscamos levantar pautas relativas à segurança pública no Congresso. Entre elas, a desmilitarização da segurança pública e a polícia de ciclo completo. Mas queremos nos diferenciar dos policiais que atuam no Congresso, que compõem o campo da direita e que ficaram conhecidos como “bancada da bala”. Nós entendemos que o debate de segurança pública é limitado, porque não é através da segurança pública que vamos fazer transformações sociais. Segurança pública nunca foi um dispositivo de transformação social. Pelo contrário, segurança pública sempre foi um dispositivo de manutenção da ordem das relações sociais. Então, se queremos transformações, precisamos sair da bolha da segurança pública e debater educação, habitação, mobilidade social, entre outros temas. De certa forma, tudo isso tem reflexo na segurança pública.

ConJur — Uma vez eleito, o senhor apresentaria um ou mais projetos logo no início do mandato? Se sim, quais?

Orlando Zaccone — Não tem como antecipar isso. Temos pautas que nós temos a intenção de levar para o debate no Legislativo. Mas o momento de apresentação dessas pautas depende de muitas articulações dentro da casa legislativa.

Mas uma das coisas que nós consideramos importantes é um projeto de lei que desvincule a Polícia Militar do Exército. O tema da desmilitarização diz respeito a algo que vai muito além da forma de atuar da polícia, da nomenclatura ou da estética. No mundo inteiro, a distinção entre polícia militar e polícia civil se dá pelo local onde a polícia está inserida dentro da estrutura do Estado. No Brasil, há uma polícia que é força auxiliar e de reserva do Exército. Não existe isso em nenhum outro lugar do planeta. Porque são os militares que têm que fazer segurança interna. Aliás, o uso de forças militares na área de segurança é repelido em países com tradição democrática. Nos EUA, por exemplo, quando ocorreram as manifestações após a morte de George Floyd, o então presidente, Donald Trump, aventou a utilização das forças armadas para repelir os protestos. E isso foi completamente rechaçado, porque é inimaginável o uso de força militar na área de segurança pública em um país de tradição democrática.

Trabalhadores da segurança pública têm que ser trabalhadores civis. Nós temos que entender por que houve a militarização no Brasil. O marco é a ditadura militar, porque antes dela, não havia polícia militar com previsão de atuação na área de segurança. A Polícia Militar existia desde o início do século XX, mas como uma força aquartelada, que ficava esperando momentos em que era chamada para prestar auxílio às forças de segurança. Não tinha previsão constitucional para a Polícia Militar atuar na área de segurança. A Polícia Militar atuava no vácuo da Polícia Civil. Com a ditadura militar, a Polícia Militar tomou as ruas. Em 1988, com um lobby muito grande das forças militares, ela foi mantida como força de segurança na Constituição.

Desmilitarizar a polícia seria cortar o cordão umbilical que as Polícias Militares têm com o Exército. Esse é um debate importantíssimo, profundo e difícil de ser feito. Antes da Reforma da Previdência, os próprios policiais militares eram a favor da desmilitarização. Havia pesquisas mostrando que 70% das bases da Polícia Militar defendiam a medida. Com a Reforma da Previdência, eles ficaram em uma situação melhor do que as dos policiais civis. E o cenário mudou.

É preciso fazer a sociedade compreender a importância de policiais civis fazerem o serviço de segurança pública. E isso por conta de princípios que muitas vezes não são debatidos na sociedade, como os princípios democrático e federativo. Por exemplo, um governador é eleito pela população. Mas a Polícia Militar do estado não está completamente à disposição do governador. Ela tem que prestar continência para o Exército. Ninguém entendeu quando, em São Paulo, o comandante geral da Polícia Militar foi às redes sociais convocar policiais militares para a manifestação pró-Bolsonaro, em um governo que era de oposição a Bolsonaro, que era o governo João Doria. Isso foi feito porque o comandante da Polícia Militar, em última análise, presta continência não só para o governador, mas também para o Exército. Presta continência para dois senhores.

Ainda está em vigor uma legislação que regulamenta as Polícias Militares (Decreto-lei 667/1969) e que tem um dispositivo que diz que se o Exército não aceitar o comandante da Polícia Militar indicado pelo governador do estado, ele não pode assumir o cargo. É legislação em vigor. Nunca foi usada pelo Exército, mas está lá. Então a desmilitarização precisa ser discutida.

ConJur — No fim de maio, assistimos a dois episódios de brutalidade policial. No Rio de Janeiro, uma operação na madrugada de terça-feira (24/5) deixou pelo menos 23 mortos na Vila Cruzeiro, Zona Norte da cidade. Um dia depois, em Umbaúba (SE), agentes da Polícia Rodoviária Federal prenderam um homem no porta-malas de uma viatura e jogaram spray de pimenta e gás lacrimogênio no compartimento. Ele morreu por asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda. Como tornar a polícia brasileira menos violenta?

Orlando Zaccone — A redução da violência policial não tem relação com o debate da desmilitarização. O que precisa ser feito, e urgentemente, é estabelecer controles mais efetivos do uso da força policial, principalmente da força que pode ser letal. Hoje não há protocolos, nem nacionais nem estaduais, que definam regras de utilização de armas de fogos por policiais. Esses protocolos são fundamentais. Recentemente, inseriram câmeras nos uniformes dos policiais de São Paulo. Isso já reduziu as mortes cometidas por policiais.

Outro aspecto da desmilitarização é que militares não são trabalhadores. Eles são regidos por uma legislação excepcional. Então são proibidos, por exemplo, de fazer greve, de se sindicalizar, de ter filiação partidária.

Isso faz com que esses policiais não tenham direitos fundamentais dos trabalhadores. A desmilitarização como restituição de direitos fundamentais ao trabalhador policial também pode contribuir para a redução da violência. Eu sempre me questionei por que policiais militares, em manifestações de outras categoriais profissionais, como professores, agrediam os manifestantes. Isso ocorre porque os policiais militares são desconstruídos como trabalhadores. Eles não se reconhecem nem são reconhecidos pela sociedade como trabalhadores. Então, os policiais não reconheçam como uma atividade legítima a reivindicação de uma greve de professores. Eles não podem fazer greve. Como vão entender o significado de uma greve? Ao devolver a condição de trabalhador a esses policiais, resgatando-se neles o sentimento de cidadania.

ConJur — O STF determinou que a polícia do Rio informe o Ministério Público de operações e suas justificativas. Porém, o MP nunca responsabiliza os policiais pelos excessos. Em artigo, o advogado Luís Guilherme Vieira sugeriu que a Defensoria Pública também fosse informada das operações e as acompanhasse in loco. Como avalia a proposta? Seria uma boa medida para conter abusos policiais?

Orlando Zaccone — No caso do Ministério Público, eu tenho um livro publicado, que foi resultado da minha pesquisa de doutorado, chamado Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Na obra, eu demonstro que o Ministério Público não é omisso. Ele é agente ativo na política de extermínio. Afinal, ao se manifestar pelo arquivamento dos inquéritos que apurar mortes cometidas por policiais, o MP constrói um discurso que legitima a ação letal da polícia. Ou seja, o MP não só deixa de fiscalizar como confere uma roupagem jurídica à ação, dizendo, no pedido de arquivamento, que aquela ação não viola a norma, está dentro da lei. A hipótese da minha tese é de que a quantidade de pessoas mortas a partir de ações policiais no Brasil é uma política de Estado, e não apenas um desvio da função policial. Se o MP diz que a maioria dessas ações letais são legais, como se pode dizer que os policiais estão se desviando da função?

No caso da Defensoria também há um problema. Quando foi eleito governador do Rio, em 2018, Wilson Witzel cogitou a possibilidade de contratar advogados para defender policiais acusados de abusos e mortes, mas a ideia desagradou à Defensoria. A Defensoria Pública ficou ofendida. Mas como a Defensoria atua como acusação? É um paradoxo. Sou crítico a essa função da Defensoria quanto a assistente de acusação. Não sei se o órgão contribuiria tanto para o controle da atividade policial.

O controle que deveria ser feito é político, não jurídico. A política é capaz de promover transformações que o Direito não é capaz. Nesse sentido, policiais que participam de ações letais deveriam ser afastados do serviço. É uma decisão política. E isso é feito não para gerar uma presunção de culpa no policial que pratica uma ação letal, mas para a preservação do direito de defesa do policial e para que se gente mude a política. Porque é uma política, e não é o policial que decide que vai sair na rua para matar. São políticas que organizam as forças policiais na forma do massacre para realizar operações militarizadas em áreas pobres, produzindo cadáveres. Isso é uma política de Estado.

ConJur — O senhor disse que não acredita muito nos controles jurídicos. Como avalia as decisões do STF na ADPF 635? Primeiro a Corte limitou as ações policiais durante a epidemia de Covid-19. Posteriormente, ordenou que o governo do Rio apresentasse um plano de redução da letalidade policial.

Orlando Zaccone — Mesmo com essa proibição e mesmo em um momento de epidemia, onde havia uma circulação menor de pessoas, menores índices delitivos, a violência policial aumentou no Rio. Isso demonstra que os controles jurídicos não dão conta dessa violência. E mostra como se trata de uma opção política.

ConJur — O que pensa sobre a descriminalização da posse de drogas para consumo? E da legalização do comércio de drogas? Seriam boas medidas para reduzir a violência, especialmente policial?

Orlando Zaccone — A legalização das drogas é um assunto fundamental. Não digo que a legalização das drogas acabaria com a violência policial, mas toda a violência policial, principalmente no Rio de Janeiro, é fundada na repressão ao comércio dessas substâncias tornadas ilícitas. Então a legalização, enquanto redução de danos, poderia diminuir muito essa violência.

Nós temos que ter estratégia. A nossa grande estratégia para legalização no Brasil é primeiro disputar a regulamentação do uso medicinal, porque a porta de entrada da legalização de qualquer droga é a farmácia. Nos EUA e na Europa, antes do debate sobre a legalização do uso recreativo, houve o debate sobre legalização do uso medicinal. Nós estamos muito atrasados quanto a isso. O Brasil autoriza o consumo de canabidiol, de medicamentos com base em THC. Mas o Brasil ainda não regulamentou a prática. O Projeto de Lei 399/2015, que regulamenta a venda de medicamentos à base de maconha, ainda está sendo discutido no Congresso.

É uma questão que também tem a ver com economia. Hoje temos que comprar medicamentos à base de maconha na Inglaterra, Canadá, EUA, sendo que poderíamos produzi-los aqui e gerar renda e empregos.

É preciso dessacralizar o assunto e fazer uma política pública de drogas, como tem no Uruguai. Lá a produção, comércio e consumo de maconha são regulamentados. E eles proibiram publicidade sobre maconha nos veículos de comunicação. E fizeram o mesmo com o álcool. Hoje, no Uruguai, é proibida a publicidade de qualquer droga. No Brasil, às 11 horas da manhã tem comercial de cerveja na televisão. É hipocrisia.

ConJur — Volta e meia o Exército é usado para operações de segurança pública. A maior delas ocorreu em 2018, quando houve a intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro. Como o senhor avalia o uso do Exército para a segurança pública?

Orlando Zaccone — A porta de entrada da militarização da política e da vida, com escolas cívico-militares e tudo isso que estamos vivendo, foi a militarização da segurança pública.

Com o fim da ditadura, o Exército passou a pensar qual seria o papel dos militares no processo de democratização. Na Assembleia Constituinte de 1988, eles conseguiram ser mantidos como responsáveis pela segurança pública. E os militares conduziram a saída da última crise política, a qual chamamos de golpe [o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff].

E a intervenção federal militar do Rio tem a ver com isso. A intervenção federal militar no Rio de Janeiro foi decretada em fevereiro de 2018 para terminar em 31 de dezembro de 2018. A intervenção federal no Rio só ocorreu para garantir a saída da crise política orientada pelos militares e pactuada com os outros poderes políticos. Não tinha nenhuma relação com a questão da segurança pública. Não podemos esquecer que o interventor, o general Braga Netto, será candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro. Braga Netto disse no primeiro dia que o Rio de Janeiro era um laboratório e que estava acontecendo no Rio poderia acontecer em qualquer estado do Brasil. A execução de Marielle Franco [ex-vereadora do Rio], que ocorreu 15 dias após a intervenção federal militar, está dentro desse jogo político, foi uma bomba no plano de se ter eleições. Porque o Exército estava dividido quanto a essa saída política. Havia setores no Exército que eram contra as eleições. Então, o general Villas Bôas [então comandante do Exército], o general Augusto Heleno e outros dessa turma pactuaram que as eleições seriam garantidas desde que Lula fosse preso. Foi nesse contexto que o Villas Bôas publicou um tweet na véspera do julgamento do Habeas Corpus do Lula mandando um recado para o Supremo Tribunal Federal. Os militares mandam recado porque eles têm essa força. É preciso tirar essa força deles.

ConJur — Como combater as milícias?

Orlando Zaccone — A milícia é um pouco como o tráfico, embora tenha surgido como algo que se oporia ao tráfico. Na verdade, há um processo de “milicialização” do tráfico e um processo de “traficalização” das milícias. O tráfico no Rio, que só vivia da venda de drogas, hoje vive também de outras economias informais. Na Rocinha, por exemplo, não se pode comprar gás fora da favela. Não era assim antigamente. Isso é a “milicialização” do tráfico. E a milícia passou a vender drogas. Hoje, em Rio das Pedras, que é uma área conhecida de milícia do Rio, tem ponto de venda de drogas. Então está tudo misturado nessa situação de ocupação territorial.

Então, quando falamos de milícia, também temos que pensar no que se fez com o tráfico. Até hoje, todas as ações repressivas ao tráfico resultaram somente em manter esses grupos cada vez mais violentos, com uma faixa etária muito jovem assumindo o comando das operações, sem uma formação crítica de nada que está acontecendo. E a milícia está indo pelo mesmo caminho. Não há ações repressivas do Estado contra a milícia, como há para o tráfico. É só ver o mapa das ações policiais no Rio de Janeiro. As ações letais militarizadas são executadas em áreas do tráfico.

Há um discurso hoje no Rio de Janeiro de que o aumento da violência policial reduziu o número de homicídios. Isso é algo absurdo pelo seguinte: uma análise do mapa de onde a polícia está matando e de onde os homicídios estão caindo mostra que esses fenômenos ocorrem em áreas distintas. A polícia mata em áreas de favelas do Comando Vermelho, do tráfico. E o homicídio caiu em áreas de milícias. O que significa que isso pode ser, na verdade, um grande combinado para reforçar o crescimento das milícias no Rio. Um dado que comprova isso é que hoje, no sistema prisional, o número de presos que são colocados em unidades no seguro [celas isoladas do resto, onde ficam presos que correm risco se ficarem junto dos demais encarcerados] é maior do que o número de presos que são colocados em unidades do tráfico. Isso está ocorrendo por causa do crescimento da milícia. Se um sujeito é preso por roubo em Campo Grande [zona oeste do Rio], ele vai para o seguro, porque Campo Grande é área de milícia.

Esse falso discurso de que o aumento da violência policial está reduzindo os homicídios pode esconder um grande pacto para que a milícia cresça e conquiste territórios no Rio. Porque existe uma cultura, principalmente na polícia, e uma visão, inclusive do poder político, de que a milícia é um mal menor. Isso porque ela atua de forma empresarial, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) atua em São Paulo. E o mal maior seria o tráfico, especialmente o Comando Vermelho, pelo enfrentamento que faz ao Estado.

De vez em quando, eles vão prender milicianos, alguns líderes, para mostrar que o Estado não pactua com isso. Mas, se for fazer uma análise de como o Estado se mobiliza na repressão ao tráfico e à milícia, chega-se à conclusão de que as ações de segurança, principalmente no Rio de Janeiro, visam favorecer a milícia.

ConJur — De modo geral, como avalia a qualidade das leis produzidas no Brasil?

Orlando Zaccone — Vou falar da área penal, com a qual tenho mais contato no dia a dia. É tudo feito a toque de caixa, visando dar respostas legislativas para alguns crimes que geraram repercussão social. Isso gera o que chama de “inflação penal” — uma quantidade imensa de leis penais que vão sendo criadas a partir de eventos de comoção nacional. Essa quantidade imensa de crimes faz com que a seletividade do sistema na identificação, processamento e julgamento dos delitos seja maior. E isso gera uma sensação de impunidade, o que é natural. Não há sistema de Justiça Criminal que dê conta de investigar, processar e julgar todas essas condutas criminalizadas a toque de caixa. E essa sensação de impunidade é relativa, pois o Brasil é o terceiro país que mais encarcera do mundo. Temos 920 mil presos [segundo dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça].

A maioria das questões que são criminalizadas poderiam ser resolvidas na esfera cível ou administrativa. É preciso acabar com a crença de que a prisão é como vamos resolver a conflitividade. Não é. Se prisão resolvesse conflitividade e reduzisse índices criminais, nós estaríamos vivendo no paraíso. Nós temos a polícia que mais mata no mundo e a terceira maior população carcerária. Não está funcionando. E solução para isso que sai no jornal é a seguinte: é porque ainda não prendemos nem matamos o suficiente. Ou seja, esse discurso se autoalimenta e não melhora nada.

ConJur — A qualidade da Justiça se subordina à qualidade das leis?

Orlando Zaccone — A qualidade das leis tem reflexo na Justiça. Mas não 100%, pois há uma certa autonomia do aplicador. Lógico que uma legislação ruim prejudica, mas ela não é totalmente definidora. Falta aos operadores jurídicos, de uma forma geral, a consciência de que a aplicação de qualquer norma requer a aplicação de princípios. E há uma disputa sobre que princípios vão ser aplicados. Vamos colocar a prisão como um altar da solução de conflitos ou vamos buscar outros meios? Por exemplo, o Código de Processo Penal autoriza uma série de medidas cautelares alternativas à prisão, mas elas raramente são aplicadas. Ou seja, o número de presos provisórios poderia cair bastante sem nenhuma alteração legislativa, apenas com a mudança de mentalidade dos operadores do Direito.

ConJur — Em sua opinião, a advocacia, a academia e demais profissionais do Direito deveriam ter maior participação no processo legislativo? Se sim, como?

Orlando Zaccone — De certa forma, isso já acontece. Quando há projetos de lei, alguns profissionais do Direito são chamados para participar de comissões, opinar. Mas seria interessante ter uma maior participação de instituições representativas de profissionais do Direito do processo legislativo, como a OAB.

ConJur — Em sua opinião, é possível ou desejável criar parâmetros objetivos para se aferir o impacto econômico e social das leis?

Orlando Zaccone — É algo interessante. Cada processo de criminalização gera um impacto. Por exemplo, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) gerou aumento do encarceramento, segundo algumas pesquisas. E isso gera um impacto financeiro para o Estado. Não sei se é possível estabelecer critérios objetivos, mas é algo interessante de se pensar.

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