Por uma revisão no modelo de luta dos sindicatos de professores no século XXI


Renato Avellar de Albuquerque
13/03/2020

Diversas vezes tive a oportunidade de manifestar minha opinião sobre o tema “greve de professores”, e em quase todas elas pareço causar espanto ao sentenciar: sou contra este tipo de greve que estamos acostumados, em que professores paralisam suas atividades por tempo indeterminado. Embora possa existir circunstâncias específicas em que tal prática seja justa, de maneira geral essa forma de resistência e pressão no âmbito da Educação Pública não está mais sincronizada com o nosso século, com efeitos bem diverso daqueles pretendidos por esse movimento.

As greves são instrumentos antigos de resistências dos trabalhadores, sendo responsáveis por inúmeras conquistas históricas, tanto trabalhistas como políticas de forma mais ampla. Mudanças de relações legais, políticas, econômicas e culturais foram desencadeadas, ou consolidadas, a partir de movimentos grevistas simbólicos. A história está recheada desses momentos, como as greves que dera origem ao 1º de Maio ou ao Dia Internacional da Mulher, além daquelas nacionais, como as greves do ABC paulista no final da década de 1970, tão importantes no processo de redemocratização do país.

Dizer sobre a importância das greves na história parece criar um contrassenso com o posicionamento de rejeição desse instrumento para reivindicações nas escolas públicas, embora esteja justamente nessa característica (ser escola pública) a grande diferença entre greves nos setores públicos e greve nos setores privados. Talvez seja importante reforçar que meu posicionamento de crítica quanto à greve não está no instrumento em si, mas nas diferenças dos significados e efeitos entre o mundo produtivo privado e a oferta de serviços públicos.

As greves são instrumentos importantes nas lutas de trabalhadores nos setores produtivos, principalmente privados, porque elas criam a urgência da negociação, basicamente porque a suspensão do trabalho gera imediatamente prejuízos economicamente quantificáveis. Por certo que outros prejuízos podem ocorrer, mas ao suspender a produção objetiva do valor de uma empresa (sua razão de ser), isso cria uma urgência para a empresa finalizar as negociações, portanto o tempo da greve atinge diretamente o empregador e o força a negociar sob a navalha da pressa ao retorno do trabalho.

Esta relação, contudo, é completamente diferente no setor público, principalmente em relação a escolas. Nessa circunstância a relação de prejuízo do governo é totalmente subjetiva, além do tempo de greve não o atingir diretamente enquanto “empregador”, mas apenas por via indireta. A falta de aulas não cria prejuízo econômico algum ao governo (e no caso de descontos de dias paralisados, cria até economia), talvez apenas um mínimo prejuízo simbólico. O prejuízo objetivo da paralisação de professores é sobre os alunos e responsáveis, os quais, em tese, irão repassar sua insatisfação ao governo, fazendo-o ter uma urgência na negociação através de pressão por parte da “opinião pública”.

Acontece que essa “transferência” de pressão, via “opinião pública”, ao governo não ocorre, principalmente pela desarticulação e enfraquecimento dos coletivos organizados. A greve na escola pública parece ser um evento rotineiro e esperado pelas comunidades e os governos, sendo sua causa atribuída cada vez mais aos professores. Soma-se a isso a dificuldade cada vez maior em conseguir adesões dos professores ao movimento de greve, por razões das mais variadas, fazendo com que as paralisações tendam sempre ao esvaziamento. Assim, ao contrário da greve no setor produtivo privado, na greve de professores públicos o tempo de paralisação está contra o trabalhador.

Uma metáfora para ilustrar a relação entre os governos e as greves na Educação Pública poderia ser a de uma gripe, a qual se considera normal sua ocorrência ao longo do ano, e que o governo já possui imunidades, restando, portanto, apenas o inconveniente de uma convalescença temporária, mas sem grandes riscos. Desta forma, os verdadeiros custos da paralisação recaem tão somente sobre a comunidade, que sem a capacidade de o repassar para o governo e carecendo de consciência política, retornam sua insatisfação aos próprios professores. Essa relação explica, em parte, um certo afastamento e desprestígio da profissão docente pública frente à comunidade, servindo de entrada para outros tipos de movimentos regulatórios externos e de desvalorização da profissão.

Em outras palavras, a greve da educação pública “sequestra” a comunidade escolar e espera do governo o resgate em forma de urgência nas negociações. Mas o governo está pouco se importando com o refém, eis que essa relação não apenas é inócua em termos práticos como eticamente duvidosa, já que usa uma sociedade já vitimada pelo governo como sacrifício para reivindicações de uma classe de servidores públicos. Isso pode soar estranho porque no ufanismo docente nossa profissão parece coberta de uma áurea imaculada e de puro reconhecimento do seu valor social. Mas talvez seja o momento de um choque de realidade, afinal, nos momentos de angústia dos familiares que não têm onde deixar seus filhos, a escola é, tão somente, uma instituição constituída por funcionários públicos. Leia-se nesta última expressão toda a carga semântica dada culturalmente ao servidores do Estado, o que nos leva a perceber que talvez haja cada vez menos espaço para o reconhecimento da profissão.

Mas é verdade que as paralisações possuem também um sentido simbólico que não visam o “sequestro” para a negociação, mas utilizam apenas o evento para mostrar o poder da mobilização de uma categoria, casos onde há a paralisação de um dia e a concentração dos profissionais para a manifestação e a unificação em torno de pautas. Estes episódios, diferente das greves indeterminadas, parecem mais promissores, desde que realmente ilustrem uma coesão de grupo ou categoria. Quando um sindicato chama seus associados e estes respondem de forma massiva, isso representa um ganho fundamental no poder de negociação da organização destes trabalhadores. Ao contrário, uma greve com pouca aderência é o reconhecimento da falta de poder e relevância do sindicato nas negociações e decisões sobre políticas que afetam a categoria, significando de fato sua desvalorização frente ao poder público.

Quando mencionei que as greves na Educação Pública parecem anacrônicas estava referindo a outros meios de mobilização e pressão, que podem efetivamente significar movimentos de lutas mais eficientes, fáceis e adequados para ampliação do poder de barganha da classe docente. Em primeiro lugar, salienta-se que o poder de negociação de uma organização está na sua capacidade de aglutinar e mobilizar forças pela concentração de pautas e discursos. Portanto, quanto maior a capacidade de um sindicato associar os membros de sua categoria, mantê-los identificados com sua liderança e replicar a “fala representativa institucional” a todos os seus membros, e dali para os demais setores da sociedade, maior a expressão de força e consequentemente o reconhecimento dos poderes que negociam as regras entre categoria e governo.

Enquadram-se nestes mecanismos a unificação de canais de comunicação direta entre organização sindical e associados. Busca ativa pela participação de 100% dos membros da categoria, mesmo parecendo utópico. Mobilização da categoria para replicação de discursos e defesas de bandeiras que representem as demandas pautadas pelas deliberações do sindicato, dentro das comunidades ou em redes sociais virtuais. Inserção e reverberação de pautas da categoria e consolidação de discursos nas várias outras representações políticas, sejam nos vários partidos políticos, sejam em associações culturais e outras formas de agremiações. Execução de atos coordenados que manifestem centralização de decisões e amplitude nos efeitos das ações, mostrando a potencia da estrutura corporativa.

Estas ações podem parecer, em um primeiro momento, práticas insuficientes para produzir efeitos nas relações de poder entre categoria e governo. Entretanto, devemos lembrar que as eleições de 2018, mais que qualquer outra no Brasil até o momento, mostrou como as redes sociais e a coordenação de discursos (seja pelo uso de fake news seja com o uso de robôs) tiveram efeitos determinantes nos resultados das urnas. As novas ferramentas digitais e sua utilização na engenharia social é fato consumado neste novo século, motivo pelo qual urge uma mudança de mentalidade nas estratégias de combate político, principalmente para os professores públicos. Aqueles que, em 2020, acreditam que vão mobilizar a categoria somente com panfletos de papel e com megafone na frente da escola, ainda não saíram do século XX e não conseguem dimensionar a revolução tecnológica em que vivemos e as mudanças sutis nos parâmetros de valores das lutas sociais.

As ferramentas digitais nos combates políticos significam uma ruptura de paradigma, uma tecnologia determinante para o resultado dos embates comparado à inserção da pólvora nas guerras. Nos últimos anos assistimos inertes ao efeito devastador que algumas dezenas de youtubers promoveram na organização de movimentos conservadores, conseguindo medir forças com entidades como a própria UNE, que congregam milhões de estudantes, reforçando a lógica histórica de que poucos bem instrumentalizados podem enfrentar muitos desarticulados. Dominar a tecnologia digital e retomar a gestão das redes (virtuais ou pessoais) que formam a força de um sindicato é essencial para o fortalecimento da categoria e para reconquistar o poder de luta em nossa sociedade, garantir direitos e avançar em reivindicações mais justas para a Educação e seus profissionais.

*Renato Avellar de Albuquerque é mestre em educação, professor da rede municipal de Canoas-RS, técnico em Assuntos Educacionais no IFRS-PoA e Secretário de Educação do MCDR-RS.

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