“João Goulart é um injustiçado. Foi um homem leal e conciliador”


Osvaldo Maneschy e Apio Gomes
18/06/2019

De longe e de perto, o jornalista Carlos Bastos acompanhou toda a carreira política do presidente João Goulart: no início, apenas como leitor de jornais, viu Jango tornar-se deputado estadual em 45; depois, deputado federal em 1950; tornando-se logo em seguida secretário do Interior e Justiça do Rio Grande do Sul, no governo de Ernesto Dornelles. Bastos também viu Jango ser alçado por Vargas para Ministro do Trabalho, onde ganhou projeção nacional.

Bastos acompanhou a crise política desencadeada pelo manifesto dos coronéis contra o aumento de 100% do salário mínimo, assinado por Vargas e Jango, no início de 1954; e também o afastamento de Jango da pasta do Trabalho por pressão dos militares e de empresários – fato que não impediu o crescimento político de Jango à frente do PTB, partido ao qual se filiara logo no início de sua vida política, a pedido do próprio Vargas, e se tornara um dos principais responsáveis da aproximação das lideranças sindicais ao PTB original.

Ainda como leitor atento, Bastos acompanhou toda a crise de agosto de 1954 e o desfecho trágico dela com o suicídio de Vargas e a divulgação, por Jango, da Carta-Testamento. Em 1955, já como jornalista, viu Jango ser eleito e tomar posse como vice-presidente da República, junto com JK; e posteriormente ser reeleito, embora seu parceiro de chapa, o Marechal Lott, tenha perdido a eleição para Jânio Quadros apoiado pela UDN.

“Acompanhei a carreira de Jango como leitor de jornais e jornalista”, explicou Bastos, frisando que na época a imprensa brasileira já era muito reacionária, exceto o jornal “Última Hora” de Samuel Wainer, onde trabalhava na sucursal de Porto alegre. A “Última Hora” publicava edições regionais em vários estados brasileiros, inclusive no Rio Grande do Sul.

João Goulart era político em ascensão no início dos anos 50, homem da confiança de Getúlio Vargas – por isto Vargas lhe confiou a Carta-Testamento quando decidiu se suicidar, na véspera de uma viagem que Jango faria a Porto Alegre, com a instrução de só abrir o envelope quando chegasse ao Rio Grande do Sul.

Bastos – como Jango, Brizola e Darcy Ribeiro – considera a Carta-Testamento o mais importante documento político da História do Brasil. Também não tem dúvidas de que Vargas preparou Jango para sucedê-lo; tanto que o indicou para vice de JK (PSD), na época em que vice-presidente, além de presidir o Senado, também era eleito pelo voto direto.

Para Bastos, a competência política de Jango era inquestionável; tanto que pegou o PTB com 60 deputados e quando foi deposto, em 1964, o partido fundado por Getúlio Vargas em 1945 já tinha 120 deputados: e era o maior do país. Outro exemplo que cita é a criação em São Paulo dos comitês ‘JanJan’, Jânio e Jango, decisivo para a sua eleição à vice-presidência, capturando votos do vice-presidente da chapa de Jânio Quadros, Milton Campos.

Bastos lembra, como se fosse hoje, o dia da renúncia de Jânio Quadros, meses depois de assumir o mandato de presidente da República.

“Estava atravessando a 7 de setembro, aqui no Centro de Porto Alegre, indo para a redação da “Última Hora” quando o pai, comunista, de um colega jornalista gritou no meio da rua para que apressasse o passo porque Jânio tinha renunciado. Ainda pensei comigo, esses comunistas!… Não acreditei. Só quando cheguei na redação, vendo a balbúrdia completa, é que acreditei na renúncia”.

A crise foi imediata, com grande movimentação em busca de informações naquele mesmo dia à tarde. Porque a campanha da Legalidade começou mesmo no sábado, depois que Brizola, governador dos gaúchos, contatou autoridades, se convenceu da renúncia e, depois, do veto dos ministros militares à posse de Jango, que estava na China. Brizola imediatamente começou a articular a reação, contatando Lott, que prepara um manifesto pela posse de Jango que, a pedido de Brizola, começa a ser difundido pelas rádios gaúchas.

Uma a uma, na medida que divulgavam o manifesto de Lott, as rádios eram tiradas do ar por ordem dos militares do III Exército.

“No domingo de manhã, o Salles, assessor de imprensa do governador, avisou a Brizola que se ele não fizesse alguma coisa, só restaria o serviço de alto-falantes em frente à praça do Palácio Piratini para difundir o manifesto do Lott. Brizola decide ocupar a rádio Guaíba – que se negara a divulgar o manifesto – e iniciar a rede da Legalidade” – uma cadeia radiofônica formada espontaneamente a partir das transmissões da rádio Guaíba, que chegou a reunir cerca de 120 emissoras espalhados por todo o país, derrotando a tentativa de golpe.

Brizola venceu a batalha da opinião pública e isolou os militares golpistas.
Sobre o levante da Legalidade, Bastos confessa: “Fiquei o tempo todo no Piratini. Tenho um galardão na minha carreira de jornalista, porque sempre procurei ser imparcial; mesmo tendo partido e clube (fui conselheiro do Grêmio, 30 anos) sempre procurei separar o jornalista. Mas tenho que confessar que na Campanha da Legalidade não fui jornalista: fui militante”.
E não foi o único:

“O clima dentro do Palácio Piratini era tão incendiário, tão empolgante, que até jornalistas estrangeiros que vieram cobrir o acontecimento se transformaram em defensores da Legalidade”.

Citou também o caso do cineasta Luiz Carlos Barreto, na época repórter da revista “O Cruzeiro”, a maior do país, que era até de oposição ao Trabalhismo. Barreto liderou grupo de jornalistas que não queriam que Jango aceitasse a solução parlamentarista. “Em determinado momento ele subiu em uma mesa para incitar os jornalistas que estavam no Piratini contra o parlamentarismo”, lembrou.

“A Legalidade envolveu as pessoas”, destacou.
Jango é um injustiçado pela História oficial, na opinião de Bastos. Ele espera que a celebração do seu centenário do nascimento sirva para recuperar a sua imagem por conta do grande presidente, grande ministro, pelo homem público de primeira linha que ele foi.

“O governo Jango foi incinerado pela mídia reacionária do Brasil. Ele foi um grande presidente; e não podemos esquecer que ele se cercou de colaboradores, como Darcy Ribeiro, Gabriel Passos (líder nacionalista da UDN), San Tiago Dantas, Walter Moreira Salles e muitos outros. Mesmo depois que cedeu à solução parlamentarista, Jango teve a habilidade para, em 63, retomar o presidencialismo . Além disso, Jango era um pecuarista rico, jamais, nunca foi ladrão”. Bastos lembrou também que Jango sempre teve por perto gente de esquerda, como Josué Guimarães e Raul Ryff, além de dialogar permanentemente com a esquerda, antes e durante o governo. “As reformas de base até hoje são necessárias”, completou.

Veio a solução parlamentarista, respeitada por Brizola embora discordasse dela, e a posse de Jango em Brasilia, a qual Brizola não compareceu por discordar do desfecho da legalidade. Brizola queria marchar sobre Brasília, fechar o Congresso, prender os três ministros militares golpistas – os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica – e convocar uma Constituinte. Depois veio o golpe e o exílio porque Jango não quis o confronto.

Da época do exílio, uma das coisas que mais o emocionou foi uma conversa com a sogra de Jango, em São Borja, em que ela lhe disse que Jango eventualmente ia ao Automóvel Clube de São Tomé, na Argentina, para ver –da outra margem do rio Uruguai – as luzes de São Borja.

“Jango sonhava com a volta ao Brasil”, o que não aconteceu. Ao definir Jango em poucas palavras, Bastos resumiu: “Jango é um injustiçado; foi um homem leal e conciliador”.

Confira a entrevista completa abaixo:

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