“Brasil para exportação”, por Bruna Werneck


Portal Disparada
13/04/2022

Brazil Conference em Boston, nos Estados Unidos, ganha grande visibilidade na mídia brasileira

*Por Bruna Werneck

O ano é 2022, ano de eleições presidenciais, e uma conferência em Boston ganha grande visibilidade na mídia brasileira por reunir os principais postulantes a substituir Jair Bolsonaro na Presidência da República. Marcaram presença, em ordem de participação, Sérgio Moro, Jacques Wagner (representando a candidatura de Lula), Ciro Gomes, Simone Tebet e João Doria. Eduardo Leite, mesmo tendo perdido as prévias de seu partido (PSDB) para Doria, deixou antecipadamente o cargo de governador no Rio Grande do Sul para se manter habilitado a concorrer em uma chapa presidencial e também marcou presença. Foi um dos integrantes da mesa que fechou o evento: “Instigando o Poder Econômico do Brasileiro”.

Trata-se da Brazil Conference, um evento anual que ocorre desde 2015, organizado por estudantes brasileiros, para “promover o encontro com líderes e representantes da diversidade do Brasil”. De acordo com o site da conferência, sua missão é “estabelecer um espaço plural para o debate, criando ideias sobre o futuro do nosso país e fomentando as transformações que melhorarão as vidas do maior número de brasileiros” (BRAZIL CONFERENCE, 2022). A programação contou também com parlamentares, lideranças de organizações da sociedade civil, empresários, professores universitários, profissionais que ocupam ou ocuparam cargos na gestão pública e jornalistas de grande renome no Brasil. Dentre as figuras de destaque, chamou a atenção e rendeu manchetes na imprensa nacional a participação de Jorge Paulo Lemann, que reafirmou seu objetivo de melhorar a educação no Brasil (BALAGO, 2022).

A atuação de Lemann no campo da educação foi meu objeto de pesquisa de mestrado e se desdobrou no livro “O Projeto Lemann e a Educação Brasileira”, que está em preparo de sua segunda edição. Desde então, sigo acompanhando suas ações e a Brazil Conference se apresenta como uma vitrine que sintetiza a capacidade de Lemann de conformar o debate público no Brasil hoje.

O primeiro aspecto que salta aos olhos é: como “um grupo de estudantes” consegue mobilizar tal capital político e financeiro?

Encontramos uma pista na página de patrocinadores do site da Brazil Conference. Na categoria mais alta, Platinum, figura a Fundação Lemann. A categoria Bronze conta com Ambev e Americanas, empresas do grupo 3G Capital. Como apoio, aparecem a Fundação Estudar e os institutos David Rockefeller Center For Latin American Studies, da Universidade de Harvard, e o MIT Mangement Latin America Office, ambas universidades parceiras da Fundação Lemann. A segunda pista é identificação de um dos co-presidentes da Conferência como bolsista da Fundação Estudar. Percebemos, então, a relação umbilical da Conferência com a rede de influência Lemann.

Entre o mundo empresarial e o terceiro setor, Lemann tem várias frentes de atuação. Tornou-se conhecido e alcançou o posto de homem mais rico do Brasil por seus investimentos em empresas de diferentes setores. Desde o início do século, Lemann se aproximou da educação e sua atuação nesse campo se articula, principalmente, em 4 instituições: a Gera Venture Capital, que é um fundo de investimentos em escolas, produtos e serviços educacionais; a Fundação Estudar, que oferece uma gama de serviços aos jovens desde cursos de empreendedorismo e facilitação na entrada do mercado de trabalho até apoio e bolsas para quem deseja estudar no exterior; a Fundação Lemann, principal interface com o poder público brasileiro; e uma rede de universidades em diferentes países onde ele financia pesquisas e onde encontram-se os especialistas que legitimam as políticas defendidas aqui.

Tendo feito esse esclarecimento, retomamos e ampliamos uma das perguntas norteadoras da pesquisa que originou o livro: qual é o projeto de Lemann não só para a educação, mas para o futuro do Brasil?

Apesar de Lemann reafirmar seu foco na educação, o espectro de temas abordados na conferência indica que seu interesse nos rumos do Brasil abarca um espectro bem mais amplo de temas. Por outro lado, se o escopo é amplo, a profundidade das transformações em âmbitos sociais e econômicos se mostra limitada. Em dado momento, Lemann diz: “A principal coisa que estou tentando é melhorar a educação em termos de tornar as pessoas capazes de participar da economia das startups ou mesmo de ser competitivos no mundo.” Essa fala deixa claro que trata-se de uma educação que se restringe a preparar os indivíduos para se integrar ao mundo que existe, sem questioná-lo ou transformá-lo.

Essa limitação fica ainda mais evidente no painel intitulado “Instigando Caminhos para Reverter a Pobreza no Brasil” (BALAGO, 2022). Nele, os convidados foram o coordenador da Pastoral do Povo da Rua de São Paulo, Padre Julio Lancellotti, o apresentador de TV Luciano Huck, o deputado estadual e ex- Secretário de Educação do Rio de Janeiro Renan Ferreirinha, e o presidente do G10 Favelas, Gilson Rodrigues. São figuras de proeminência em cada um de seus campos, porém é gritante a falta de uma fala mais contundente sobre as estruturas da sociedade que levam à pobreza, que apresente propostas para solução em escala ou que questione nosso sistema tributário e a (má) distribuição de riquezas em nosso país.

O que Lemann parece, sim, interessado em transformar no Brasil é o debate público, que passa a ser privatizado. Se muitos criticam a construção de Brasília, por ter afastado o centro de poder do povo, o que dizer de uma conferência para debater os rumos do Brasil em Boston? Que outra organização conseguiu reunir todas as pré-candidaturas de oposição ao Bolsonaro em 2022? Por que estar disponível para uma discussão sobre os rumos do Brasil nos Estados Unidos é tão importante que não se pode deixar de ir?

A transferência do lócus de discussão política promovida pelo ecossistema Lemann do Brasil para os Estados Unidos não se inicia com a Brazil Conference. Foi em Yale que se deram as reuniões embrionárias que levaram à construção do Movimento Pela Base. Além disso, houve em novembro de 2018, logo após as eleições de Jair Bolsonaro e dos parlamentares ex-bolsistas Lemann (Tábata Amaral, Felipe Rigoni, Thiago Mitraud), um encontro em Oxford para debater gestão pública e educação (FUNDAÇÃO LEMANN, 2018). Triste ainda constatar que a Brazil Conference sequer é única ou inovadora. The India Conference (INDIA CONFERENCE, 2022) está em sua 19ª edição, em 2022. Há também a Mexico Conference (MEXICO CONFERENCE, 2022) e possíveis outras.

Vale ressaltar que essas conferências não são iniciativas de Harvard ou do MIT ou de qualquer outra instituição acadêmica de referência. A curadoria de convidados e temas não é definida pelos pesquisadores e professores dessas instituições, mas pelo crivo dos estudantes em Boston – que se utilizam de seus vínculos para emprestar prestígio ao evento – e dos patrocinadores. O Brasil figura, então, como apenas mais um produto em exibição para consumo externo: um recorte que atende a interesses específicos apresentado em um palco internacional e que é recebido de volta no Brasil como tendo uma validação científica ou acadêmica de excelência. Constatar que esse evento produzido por estudantes se torna imprescindível para nossos principais líderes políticos nos obriga a lidar com a realidade brutal de que ainda estamos muito distantes de nosso ideal de país soberano.

Retomo e adapto, então, outra das perguntas norteadoras de minha pesquisa: como a Brazil Conference se legitima como esse espaço de debate sobre os rumos do país?

Mais uma vez a conferência expõe uma tecnologia de legitimação que vem sendo utilizada e aprimorada pela Fundação Lemann em seus 20 anos de existência. Além dos próprios convidados gerarem um justificado interesse, vemos a articulação de jornalistas e veículos de imprensa para ampliar a visibilidade da Conferência. Os painéis foram transmitidos ao vivo pelo canal do Estadão no YouTube e vários deles moderados por jornalistas do grupo Globo, como Vera Magalhães, Natuza Nery e Eliane Cantanhêde (BRAZIL CONFERENCE, 2022).

A Brazil Conference conta ainda com uma série de programas satélite (BRAZIL CONFERENCE, 2022):

. O BC Comunidades é focado em lideranças comunitárias, professores do ensino regular e alunos do ensino superior no Brasil e tem como objetivo apoiar projetos locais com vistas a proposição de políticas públicas;

. Diálogos são encontros locais no Brasil, que se estruturam em torno da transmissão ao vivo de algum dos painéis da Brazil Conference e promovem o debate aqui em solo brasileiro;

. O programa Documentaristas oferece acesso de bastidores a estudantes universitários que queiram fazer a cobertura da Brazil Conference em texto ou audiovisual;

. O programa Embaixadores tem o propósito de criar lideranças; e

. O HackBrazil que tem a missão de apoiar startups “que resolvam grandes problemas brasileiros”.

São iniciativas válidas e objetivos nobres. Mas e a estrutura desigual de nossa sociedade? Até quando vamos aceitar um Estado subfinanciado e depender das boas intenções de quem detém boa parte de nossas riquezas? Em que momento abrimos mão da noção de cidadania, em que temos todos direitos iguais, e nos contentamos com uma sociedade dividida entre quem doa (e define o uso dos recursos) e quem depende de doação (e precisa se adequar aos interesses do doador)?

É preciso urgentemente que a esfera pública ofereça caminhos alternativos para o desenvolvimento pessoal e profissional das pessoas que pensam transformações estruturais do país. Universidades, escolas de governo e agências de financiamento têm um papel a cumprir, oferecendo meios para que essas ambições individuais se alinhem ao interesse público de um Estado que atenda às necessidades da população.

Toda democracia é constantemente manipulada por aqueles que detém a maior parte da riqueza e do poder, com vistas a manter seu status e impedir transformações estruturantes. A Brazil Conference, financiada e apoiada pelo homem mais rico do Brasil, expõe orgulhosamente toda a fraqueza da nossa.

*Bruna Werneck é mestre em Ciência Política, integrante da Fundação Leonel Brizola – Alberto Pasqualini  (FLB-AP) e autora do livro “O projeto Lemann e a Educação Brasileira”.

Referências:

BALAGO, Rafael. ‘Teremos um novo presidente no Brasil ano que vem’, diz Jorge Paulo Lemann. 9 abr. 2022. Acesso em: 11 abr. 2022.
BRAZIL CONFERENCE. Site institucional. Acesso em: 11 abr. 2022.
CANABRAVA, Bruna Werneck. O Projeto Lemann e a Educação Brasileira. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2021.
FUNDAÇÃO LEMANN. Autoridades brasileiras debatem gestão pública e educação. 24 nov. 2018. Acesso em: 11 abr. 2022.
INDIA CONFERENCE. Site institucional. Acesso em: 11 abr. 2022.
MEXICO CONFERENCE. Site institucional. Acesso em: 11 abr. 2022.

Compartilhe: