Corrida bancária nos EUA e lições para o Brasil


Monica De Bolle
14/03/2023

Como as redes sociais distorcem a comunicação e os incentivos

Ontem, um domingo, o Tesouro norte-americano anunciou medidas excepcionais para conter os estragos causados pela falência do Silicon Valley Bank (SVB) no dia 10 de março, e, na sequência, do Signature Bank, no dia 12. Autoridades não fazem anúncios assim a não ser que tenham razões para temer as possíveis repercussões do dia seguinte, uma segunda-feira. Ao que parece, entre as razões pode ter estado a constatação do dano causado pelo megafone das redes sociais. O SVB perdeu, na quinta-feira, 9 de março, cerca de US$42 bilhões de depósitos, ou uns US$4,2 bilhões por hora. Esse tipo de hemorragia é inédito e diz muito sobre essa nova era de crises bancárias em que a comunicação por meio das redes sociais exerce tanto um poder destrutivo, quanto outro de captura. No caso, de possível captura das autoridades responsáveis por estancar a sangria, submetidas à pressão exercida por depositantes sofisticados nas plataformas digitais.

Mas, tratemos primeiramente do ineditismo do anúncio do Tesouro. No comunicado, o Tesouro norte-americano garantiu, junto com o Fed e o FDIC — o FDIC é agência regulatória e fundo garantidor de crédito aqui nos EUA — que os depositantes do SVB e do Signature Bank seriam plenamente ressarcidos. Para tanto, foi invocada a “systemic risk exception” geralmente reservada às grandes instituições sistêmicas. Houve, portanto, o estabelecimento de um precedente importante pós-2008: é a primeira vez desde a grande crise financeira internacional que instituições não-sistêmicas recebem uma garantia plena para os seus depósitos.

O que é uma instituição sistêmica?

Para entender a relevância do anúncio é preciso saber o que é uma instituição sistêmica. Instituições sistêmicas são aquelas capazes de provocar uma crise em todo o sistema financeiro quando enfrentam problemas. Essas foram as instituições que estiveram no centro da crise de 2008, razão pela qual aquela crise teve ramificações mundo afora. Antes da crise de 2008, entendia-se como característica principal das instituições sistêmicas o seu tamanho, ou seja, todas aquelas designadas “grandes demais para falir”. Embora tamanho continue a ser um critério distintivo, a crise de 2008 mostrou que mesmo estabelecimentos menores, desde que muito conectados com os demais, inclusive com os sistêmicos, devem ser tratados, também, como sistêmicos. Ou seja, surgiu o segundo critério, “interconectado demais para falir”.

O novo entendimento sobre risco sistêmico definido a partir desses dois critérios levou à reformulação da lei de regulamentação financeira nos Estados Unidos. Em 2010, foi aprovada pelo Congresso a Lei de Dodd-Frank, que transferia para o Fed a responsabilidade de identificar e regular diretamente as instituições consideradas sistêmicas. A elaboração da nova lei e seus principais elementos foi tratada por mim e por Dionisio Dias Carneiro, além de outros autores, nesse livro. A Lei de Dodd-Frank, além de modificar o papel regulatório do Fed, também tornou mais estritos os critérios regulatórios para as instituições sistêmicas. As não-sistêmicas continuaram a ser tratadas como antes. É importante entender que, à diferença do Brasil, o sistema regulatório norte-americano é bastante fragmentado: há diferentes reguladores para diferentes tipos de instituição. Em contrapartida, no Brasil, todas as instituições bancárias estão sujeitas à regulação e supervisão pelo Banco Central.

A crise bancária regional

Outra diferença importante para marcar a relevância do anúncio do Tesouro é a que separa a crise de 2008 da que se desenrola nesse momento. A crise de 2008 atingiu o cerne do sistema financeiro norte-americano quando instituições diversas se viram abarrotadas de ativos cuja precificação perdera sentido. Esses ativos eram papeis securitizados e que se valiam de estruturas complexas e cujo risco se tornara imensurável devido à sua complicada elaboração. Antes da crise, pensava-se que as estruturas concebidas ajudavam a diversificar o risco, reduzindo as chances de que um ativo perdesse valor. No decorrer da crise, se compreendeu que na realidade aquelas estruturas não só não diversificavam risco algum, como tinham ajudado a disseminá-lo pelo sistema financeiro quase inteiro — tanto nos EUA, quanto em outras partes do mundo. Ou seja, havia um problema agudo de opacidade das carteiras das instituições financeiras.

Dessa vez, não só a crise bancária se desvela entre bancos regionais, isto é, bancos periféricos que não fazem parte do grupo sistêmico, como os ativos em questão são absolutamente transparentes. Nada há de mais transparente do que um título do Tesouro, os principais ativos no balanço do SVB, por exemplo. O que houve com esse banco foi uma falha dupla: o próprio banco não fez a provisão adequada para perdas decorrentes do aumento das taxas de juros nos EUA, assim como os reguladores do estado da Califórnia não fizeram a sua parte no monitoramento do banco. O caso do Signature Bank é um pouco distinto pois esse banco aceitava depósitos em criptomoedas. Vinha ele sofrendo saques desde a quebra da operadora de cripto FTX. De todo modo, como as duas instituições pertenciam a nichos semelhantes, servindo empresas e indivíduos ligados aos setores de tecnologia, o contágio era quase inevitável. Ainda não sabemos quantas outras instituições de médio porte e periféricas poderão sofrer desfechos semelhantes aos do Signature Bank. Enquanto escrevo esse artigo, outro banco, o First Republic Bank, viu suas ações despencarem na abertura dos mercados e obteve uma injeção de liquidez e capital por parte do Fed e do banco JP Morgan, respectivamente.

E as redes sociais nisso tudo?

A clientela do SVB, majoritariamente formada por empresas startups atuantes na área de tecnologia e, portanto, hiperconectadas entre si, foi responsável por soar o alerta sobre a situação do banco. Na quarta-feira, 8 de março, o SVB havia feito um anúncio confuso e mal-elaborado sobre a situação financeira do banco. A má comunicação é a maior inimiga das instituições bancárias por serem essas instituições extremamente dependentes da confiança de seus depositantes devido ao descasamento de maturidades que as define. Bancos tomam empréstimos de curto prazo e investem em ativos de longo prazo. Logo, estão sempre sujeitos a surtos de pânico por parte dos depositantes. No caso do SVB, dois fatores conspiraram contra o banco: a má comunicação que levou aos volumosos saques, e o pânico dos clientes amplificado nos megafones das redes sociais. Disso resultou uma das maiores falências bancárias em menor tempo da história, como apontava no início desse artigo.

Contudo, há mais. O poder amplificador das redes sociais pode ter levado o Tesouro, o Fed, e o FDIC à decisão inédita de domingo, 12 de março. Afinal, as plataformas são rastilho de pólvora e qualquer pânico remanescente poderia se multiplicar de forma descontrolada nos dias subsequentes. Penso que essa possibilidade, a de uma crise bancária ainda maior provocada pelo medo impulsionado por algoritmos, tenha sido um fator decisivo para o Tesouro, para o Fed, para o FDIC.

E o Brasil?

Não, o Brasil não deve ser afetado diretamente por essa crise, ao contrário do que ocorreu em 2008. Contudo, ela oferece lições importantes. A primeira delas é que ciclos de altas intensas e rápidas de juros tendem a fazer vítimas. Nos Estados Unidos, as vítimas do aperto monetário estão sendo os bancos regionais e periféricos — instituições de médio porte, mas que atendem setores importantes como o de startups. Não faltam análises catastróficas sobre como a crise atual poderá fazer do quadro para essas empresas terra arrasada. Ressalto que muitas dessas análises têm sido apresentadas pelos próprios participantes do setor, o que sugere conflitos de interesse e algum inevitável exagero.

No Brasil, as vítimas do aperto monetário também tem sido empresas afetadas tanto pelo encolhimento do crédito privado, quando por eventos como o das Lojas Americanas. Não à toa, há bastante especulação sobre a possibilidade de uma recessão no País, o que requereria uma redução célere das taxas de juros para evitar uma alta do desemprego a partir de níveis já elevados. A crise bancária regional ora em curso aqui nos Estados Unidos também tem suscitado reavaliações sobre os próximos passos do Fed em relação às taxas de juros.

A segunda lição é sobre a comunicação e o papel das mídias. Sendo o Brasil um País em que todos estão plugados em alguma mídia — seja WhatsApp, Twitter, Facebook, Instagram, Telegram, ou o que for — os megafones são ubíquos. É fundamental que o Banco Central como órgão regulador e supervisor esteja, também, ciente do dano que as mídias sociais podem causar, sobretudo em um país tão movido pelos afetos facilmente turbinados pelos algoritmos: o medo, a raiva, a indignação.

Tudo, em todo lugar, ao mesmo tempo. É isso, também, que as mídias nos trazem.

(*) Monica De Bolle é professora e economista.

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