Brasil, China, e o caminho da independência


Pedro Augusto Pinho
10/04/2023

Na viagem de Lula à China, o Brasil abre possibilidade de refazer seu Estado, criar instrumentos institucionais e fortalecer a atuação do Governo

Por Pedro Augusto Pinho*

“É imprescindível, ao se estudar a questão da liberdade, não perder jamais de vista que o homem se torna livre num quadro de relações recíprocas de dependência, de limitações e de abstenções mútuas, que é a sociedade” (Hermes Lima, “Introdução à Ciência do Direito”, 1933).

A História sempre nos traz visões ou versões do passado, poucas vezes a descrição factual, a percepção da época e dos atores. Isso porque o passado serve para justificar o presente e formar as decisões para o futuro.

O Brasil foi um país diferente durante as cinco décadas que vão de 1930 a 1980.

Fora deste intervalo, o Brasil se sujeitou aos interesses estrangeiros, como colônia formal, seu status político, ou sendo colônia efetiva, sob a orientação forânea, ideológica, econômica, social e política.

Antecede aos nossos 50 gloriosos um movimento construído no meio militar, que ficou conhecido como tenentismo.

Este movimento surgiu da política gaúcha, com características próprias, no fim do Império e início da República, influenciado pelo pensador francês Auguste Comte (1798-1857), o positivismo, ajustado e revisto pelas condições nacionais riograndenses.

Também contribuíram para formação do que designaremos Nacional Trabalhismo, ideologia política brasileira, dois pensadores alemães: Johann G. Fichte (1762-1814) e Georg F. List (1789-1846).

BASES DO NACIONAL TRABALHISMO

Durante 339 anos o Brasil foi, formalmente, um país escravista.

Isto é, desde quando se constituiu o Governo-Geral do Brasil (1549), com Tomé de Sousa, até a Lei Áurea (1888), sancionada pela Princesa Isabel, filha do Imperador Pedro II.

No entanto, a escravidão efetiva, a falta de condição para a realização pessoal pelo trabalho, o modo mais democrático de se constituir cidadão, ainda é um objetivo a se alcançar no Brasil.

Nos 50 gloriosos chegamos perto. Porém, o retrocesso neoliberal que se seguiu eliminou muitas das conquistas civilizatórias daquele período de inspiração tenentista.

O nacionalismo exige um Estado que representará a Nação. Fichte denomina o encontro de vontades privadas para que a proteção, proveniente do Estado, seja positiva e não um desejo ou uma abstenção.

Em Fundamento do Direito Natural, de 1796, J.G. Fichte diz:

“O contrato de cidadania consiste em que os limites da liberdade de cada um devam ser protegidos por meio da coação, com recurso da força física, dado que não se pode deixar ao cuidado da mera vontade”.

“Cada um dá toda a sua propriedade como penhor de que não quer violar a propriedade de todos os demais”, propriedade entendida não somente pelos bens, mas incluindo todos direitos.

“Se um povo não tem qualquer forma de governação, não sendo, por conseguinte, um Estado, o Estado vizinho o submete ou o força a dotar-se de uma Constituição. Tal povo estaria completamente destituído de direitos”.

Grande parte, senão todas mazelas do Brasil 2023 vêm da retirada de poder do Estado para atribui-lo ao “mercado”, à liberdade contratual entre particulares, fundada em meios distintos.

Observe o prezado leitor que um contrato sem a garantia do Estado coloca o “poder” judiciário numa condição de “personalidades”, não de gestor de direitos.

É uma ficção o poder sem Estado, ou seja, outra disfunção trazida pelo neoliberalismo.

Georg F. List, na introdução do seu livro Sistema Nacional de Política Econômica, 1841, coloca em letras maiúsculas a palavra nacionalidade (o negrito abaixo é nosso):

“Diria que a característica básica deste meu sistema reside na NACIONALIDADE. Toda a minha estrutura está baseada na natureza da nacionalidade, a qual é o intermediário entre o individualismo e a humanidade inteira”.

Voltemos a Fichte, que observa:

“Vários Estados unem-se e garantem uns aos outros, e mesmo a qualquer Estado que não faça parte da aliança, a sua independência. A fórmula desta confederação seria que todos nós prometemos exterminar, com base na união de nossas forças, o Estado que não reconheça a independência de um de nós ou que venha romper o contrato existente entre nós”.

Fichte também ressalta que o contrato de defesa da cidadania é compulsório, mas o da confederação é uma opção do Estado independente: “Nenhum Estado tem o direito de coagir outro Estado para que lhe proporcione proteção positiva”.

A INICIATIVA DO CINTURÃO E ROTA (2013)

O sonho chinês é o sonho pela paz, pelo desenvolvimento, pela cooperação e pelo benefício mútuo,  sendo benéfico não apenas para o povo chinês, mas intimamente ligado aos belos sonhos de todos os povos do mundo, assinalou Xi Jin Ping, em 29 de novembro de 2012.

Há semelhanças entre a Confederação de Fichte e o caminho proposto pela República Popular da China (RPCh).

O mundo euro-estadunidense, dito ocidental, criou uma história para camuflar a destruição de países, etnias e idiomas que perpetrou ao longo de século e meio.

Erigiu como supremos valores intangíveis e de múltiplas compreensões.

O que vem a ser liberdade se o ser humano não tem as condições mínimas para viver?

O que é democracia onde o Estado não garante a saúde, a educação, a habitação e a mobilidade para todos, deixando-os dependentes de terceiros, muitas vezes estrangeiros, hoje certamente financistas?

O modelo ocidental de relacionamento é colonial, impositivo.

Nesta construção histórica, o ocidente fez um corte de alguns anos, anos de guerra, inclusive contra forças ocidentais, para afirmar que comunismo e totalitarismo eram sinônimos, e criou toda uma mitologia de miséria, opressão e ilegitimidade para atacar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), ainda mais quando esta superou tecnologicamente os Estados Unidos da América (EUA) na conquista espacial.

Não importa se, hoje, a Federação Russa adota o modelo capitalista de economia. Para a população doutrinada pelos euro-estadunidenses a Rússia continua a ser comunista.

Também o modelo participativo da democracia chinesa não é assim considerado, pois o simples nome Partido Comunista da China (PCC), único a governar a RPCh, transforma aquele país numa ditadura comunista.

Em nove anos, a Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR) já congrega149 países e 32 organizações internacionais, mostrando não apenas sucesso político, como sinergia na construção de novas relações internacionais.

Trabalho de quatro pós-graduados brasileiros — A Iniciativa do Cinturão e Rota e os Dilemas da América Latina — publicado, em dezembro de 2020, na Revista Tempo do Mundo, concorda com o professor chinês Wang Yi Wei (The Belt and Road Iniciative: what will China offer the world in its rise“, 2016):

“a iniciativa possui moldes contrastantes com aqueles do processo tradicional de globalização, na medida em que a sua proposta possui o potencial de proporcionar uma globalização inclusiva, sem assimetrias entre o marítimo e o terrestre, o urbano e o rural, os países desenvolvidos e os em desenvolvimento.

A inserção e a inclusão estariam centradas no que o autor denominou cinco fatores de conectividade, nomeadamente: i) comunicação política; ii) conectividade de infraestrutura; iii) comércio desimpedido; iv) circulação monetária; e v) entendimento entre pessoas”.

LULA VAI À CHINA

Remarcada para 11 de abril, Lula e expressiva comitiva viajarão à RPCh. No 18º Congresso do PCC, discutiu-se a modernização do sistema e a capacidade de governança do Estado.

Vítimas do colonialismo ideológico ocidental, o Brasil só cresceu quando governos fortes promoveram a centralização das iniciativas políticas, econômicas e sociais, ou seja, nos governos de Getúlio Vargas (1930-1945 e 1950-1954) e durante 1967 a 1979, nos governos militares.

Em todo restante de nossa história, mesmo no período do Império, prevaleceu o tipo de federação que não frutificou em qualquer país, em tempo algum.

Mas, e os EUA? Depende de seu referencial.

O povo estadunidense sempre foi desprovido de assistência do Estado. Poucas instituições de ensino públicas, nenhuma assistência pública à saúde, nem falar de moradia e mobilidade.

Há um ditado bem preciso que diz ser a liberdade estadunidense o direito de usar o dinheiro que nem tem para comprar no supermercado e, assim, se endividar.

Mas os EUA assumiram a voracidade europeia de apropriação dos recursos dos outros, e esta absorção se deu em proveito da plutocracia construída numa Constituição que se mantém há 236 anos com somente 27 emendas, algumas apenas para ajustar ou atualizar processos, sem alterar direitos e conteúdos.

O Estado Nacional Brasileiro vem sendo destruído desde 1980, sob variados pretextos.

Porém, sempre no sentido de ser substituído por interesses de grupos privados, nem sempre brasileiros e nunca desenvolvimentistas, qualquer que seja esta ideia, meramente econômica ou social e civilizatória.

Na estratégia chinesa, a inovação, o meio rural, a população como um todo, estão acima da mera elevação da renda nacional, o Produto Interno Bruto (PIB).

Nesta viagem de Lula, o Brasil abre uma possibilidade de refazer seu Estado, criar os instrumentos institucionais que permitam a reconquista dos direitos dos trabalhadores, o fortalecimento da atuação do Estado, não apenas nas áreas da assistência social, mas do controle de bases indispensáveis para sua própria existência, como a energia e a tecnologia.

Vamos nos dedicar à verdade, ao conhecimento dos fatos, começando pela história do Brasil, sem nos deixar levar por preconceitos ideológicos, religiosos e muito menos aqueles importados sob a dominação colonial.

(*) Pedro Augusto Pinho é o atual presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás – AEPET.

 

Fonte: Viomundo

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